BENIM, Costa Oeste da África – A viagem começou antes do embarque. Começou com um livro. Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, me lançou ao passado da menina Kehinde, arrancada do Reino do Daomé e levada à força para a Ilha de Itaparica, escravizada.

Em um dos capítulos, um provérbio africano ecoou em mim como uma convocação: “Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens.”

Olhei para trás. E vim.

Comecei pela Bahia, minha terra. Passei a frequentar terreiros, livrarias, feiras, museus. Conversei com babalorixás, ialorixás, escritores, guias, poetas, mestres de capoeira, cozinheiras, historiadores. Foi uma escuta longa e viva. Uma pesquisa feita com os pés no chão e os sentidos acesos. Eu queria entender minha ancestralidade. Queria saber o que havia entre Kehinde e eu.

Foi então que cheguei a Pierre Verger, o fotógrafo e etnólogo francês que dedicou a vida a estudar os vínculos entre a África Ocidental e o Brasil. Seu livro Fluxo e Refluxo me levou mais longe: atravessei o Atlântico e fui até o Benim.

Em Ouidah, caminhei pela Praça Chacha e ouvi histórias sobre Francisco Félix de Souza, o mais famoso traficante de escravizados da costa africana. Contornei a árvore onde homens e mulheres, antes de serem embarcados, davam sete voltas para esquecer suas raízes.

Na sequência do caminho da dor, atingi a Porta do Não Retorno, onde milhares foram enviados às Américas. Chorei. A pele, arrepiada. O corpo, um tambor que ressoava o que meus ancestrais viveram.
A Porta do Não Retorno é um monumento memorial construído pela UNESCO como parte do projeto “Rota do Escravo”. Simboliza o último ponto em solo africano pisado por quem foi sequestrado, desumanizado e arrancado do seu mundo. Para mim, era também um ponto de reconexão.

No mercado Danktopa, em Cotonou, o maior da África Ocidental, me perdi entre os tecidos, frutos, animais e objetos para rituais. Fiz uma oferenda a Xangô no mercado de fetiches de Bohicon, onde animais vivos e mortos compõem uma farmácia espiritual. O sacerdote que conduziu a bênção disse que minha ida era, na verdade, um retorno.

Em Dassa, participei de um ritual vodun. O vodun, origem do que conhecemos no Brasil como candomblé, é uma religião de matriz africana baseada na relação com divindades e ancestrais. É um sistema filosófico, moral e espiritual de conexão com o invisível.

Em Ketou, cidade importante nos estudos de Verger, consultei o Ifá – um sistema de adivinhação oral praticado por babalaôs que revelam mensagens dos orixás e dos antepassados. Fiz um ebó com os pés descalços, olhos fechados e o coração aberto. Entendi que os animais ali sacrificados são mensageiros. E que o sangue que corre é sagrado, pois carrega o elo entre mundos.

Conheci o Reino de Abomey, antiga capital do Daomé, e presenciei a impressionante dança dos Egunguns — espíritos ancestrais que voltam à Terra vestidos com trajes cerimoniais para proteger e orientar os vivos.
Em Ofiá, assisti à dança Geledé, ritual conduzido por mulheres que exalta a fertilidade, a justiça e o equilíbrio da comunidade.

Em Porto Novo, a capital política do Benim, conheci os Zangbeto, figuras encapuzadas com trajes de palha longa que dançam para espantar os maus espíritos e proteger a cidade. Seus movimentos lembram o nosso Omolu, revelando mais um elo entre o Benim e a Bahia.

Ali também vi as casas dos Agudás, descendentes de africanos escravizados no Brasil que, uma vez libertos, retornaram à África. Muitos se estabeleceram em Porto Novo e Ouidah, trazendo consigo hábitos, arquitetura, religiosidade e a língua portuguesa. São a expressão viva do que Verger chamou de “refluxo”.

No Templo dos Pítons, em Ouidah, superei meu pânico e coloquei no pescoço a cobra sagrada. Ali, a píton é símbolo de sabedoria e canal de comunicação com o mundo espiritual. Dizem que ao segurá-la, ela te limpa e te reenergiza. Recebi a bênção.

Em Ganvié, a “Veneza africana”, flutuei entre casas de palafita construídas sobre o lago Nokoué por povos que fugiram do tráfico de pessoas. Ao chegar na missa cristã celeste, todos dançavam e cantavam para afastar os males. Entrei descalça, tocada por uma fé que pulsa com os tambores. Uma menina me tocou o pé e ficou acariciando meu tornozelo. Nunca saberei o porquê. Mas senti.

Essa viagem foi o ápice de uma trilha ancestral que venho percorrendo há anos. Um círculo que começou com a literatura e se completou na terra dos meus. Um roteiro que entrelaça Jorge Amado, Carybé, Pierre Verger e Kehinde, mas que, no fundo, me levou ao encontro de mim mesma.

Adupé, agradeço em yorubá.

Voltei mais inteira. Mais consciente. Mais pertencente.
A mancha de dendê, como se diz na Bahia e no Benim, não sai.

Adriana Lacerda é curadora de viagens de conhecimento na NomadRoots.