O ano já estava terminando quando, out of the blue, Beyoncé desembarcou em Salvador. A cantora fez uma aparição de menos de 10 minutos num evento de lançamento mundial de seu filme, Renaissance.

Se no palco ela ficou dez minutos, sua localização no perfil do Instagram registrou a cidade de Salvador por mais de uma semana. Perfil, diga-se de passagem, com mais de 310 milhões de seguidores. Mas o que Beyoncé viu em Salvador que as marcas não estão vendo?

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Esta provocação é do Secretário de Cultura de Salvador, Pedro Tourinho. Em novembro, o mês da Consciência Negra – e antes de Beyoncé desfilar na cidade – a capital baiana abrigou o maior evento negro do País. Artistas do naipe de Viola Davis, Angela Bassett, Victoria Monét, Ludmilla e Seu Jorge passaram por lá. Mas as marcas ficaram de fora.

“Racismo e comodismo,” acusa Tourinho, apontando que as marcas patrocinam o Natal, a Virada, o Carnaval – mas não o evento negro. 

O baiano hoje está político, mas é uma figura empresarial bastante conhecida das marcas. Tourinho já foi empresário de Anitta, Regina Casé e Bruno Gagliasso. Trabalhou no Grupo ABC, na Record e na Globo. Hoje é sócio licenciado da Soko, uma agência de publicidade em São Paulo. 

“Quando a gente fala de novembro e Consciência Negra em Salvador, se fala da cidade que tem o maior número de artistas influenciadores criativos negros da América. Nada justifica não ter nenhum investimento aqui. A não ser comodismo e achar que fazer ação identitária, que trabalhar com a diversidade é convidar meia dúzia de pessoas negras para ir a um camarote no festival”. 

Tourinho critica que as marcas esvaziem seus caixas para patrocínio de eventos, despejando de uma só vez R$ 25 milhões “para ter um estande” em festivais como o Rock in Rio ou The Town. “Os grandes festivais viraram o ralo do patrocínio,” diz Tourinho.

Ele também critica o fato de que os decisores das empresas são em sua grande maioria brancos – mas na Prefeitura de Salvador não é muito diferente. Salvador tem uma população de 83% de negros e o próprio secretário admite que são pouquíssimas as pessoas negras no comando. Seu prefeito, Bruno Reis (União Brasil), se declara pardo, assim como seu padrinho político, ACM Neto. 

Neto chegou a tentar fazer uso político desta condição e virou meme por não ser reconhecido como negro pela população.

Os movimentos negros também criticam a Prefeitura por contratar o que chamam de “empresas brancas” para organizar eventos. No mês da consciência negra, mesmo um dos maiores eventos privados, o Liberatum, teve que responder a acusações de racismo. O brasileiro negro “está sujeito a situações de racismo em toda e qualquer esquina de Salvador, de São Paulo, do Rio, a qualquer momento,” diz Tourinho.

Salvador quer se firmar como uma Capital Afro, e o carnaval adotará esse mote a partir deste ano. 

Abaixo, a conversa de Tourinho com o Brazil Journal

Em outubro você foi ao LinkedIn criticar todas as marcas do País por não patrocinarem os eventos negros que aconteceriam em Salvador no Mês da Consciência Negra. O que aconteceu? 

No turismo, a gente vai aprendendo aos poucos que você não consegue brigar com a sazonalidade. Você consegue criar uma nova sazonalidade, às vezes. O Novembro Salvador Capital Afro foi uma iniciativa nossa para criar uma nova sazonalidade, em novembro, que é o mês da Consciência Negra. 

Nós apoiamos mais de 20 eventos, iniciativas de produtores, empreendedores negros da Bahia e do mundo, para que tivéssemos em todos os dias de novembro algum evento de arte, música, cinema, palestras, exposições, tudo feito por artistas negros, por empreendedores negros, e para o público negro. A programação começou com o Liberatum, um evento internacional que trouxe a Viola Davis e a Angela Bassett, duas das grandes estrelas, das maiores atrizes negras do mundo. Junto com artistas baianos e brasileiros como Luedji Luna, Seu Jorge, Margareth Menezes.

Nesse evento, a Viola Davis anunciou que vai abrir em Salvador uma produtora de entretenimento chamada Axé, baseada também nas narrativas negras da cultura.

Ainda na sequência a gente teve o Afropunk, que é o maior festival de música negra do mundo, que já está no terceiro ano em Salvador, e que trouxe também as estrelas internacionais como a Victoria Monét, que é uma das grandes cantoras pops do mundo negro, e artistas nacionais como Alcione e Ludmilla. 

Teve o festival internacional de cinema negro. Abrimos o Museu Nacional de Cultura Afro-Brasileira, que é o maior museu da cultura negra e que estava fechado há muitos anos. Fizemos um grande carnaval, com todos os blocos afro, gratuitos. Teve o Afrofuturismo, o festival internacional e inovação baseado empreendedores negros. 

Enfim, muitos eventos – e a Prefeitura apoiou praticamente sozinha todos eles. Não houve nenhum apoio consistente das marcas. Quando eu provoquei no LinkedIn, a Gol Smile entrou apoiando alguns desses eventos. A Americanas fez uma ação de patrocínio em um deles. E então teve uma empresa de cosméticos que me ofereceu R$ 25 mil para patrocinar o evento, o que foi meio vergonhoso.

Quanto a Prefeitura colocou de dinheiro?

Em torno de R$ 8 milhões. E que se pagou totalmente, porque tivemos um mês com 90% de ocupação dos hotéis, e um retorno de mídia absurdo. 

Você dizia na sua postagem que as marcas não investem fora do eixo Rio-São Paulo, mas estamos falando de Salvador, que tem um carnaval famoso, com um monte de patrocinadores. O que acontece?

É racismo e comodismo. Eu estou falando isso porque eu tenho uma agência em São Paulo e eu sei como funcionam as grandes marcas. Elas gastam mais em um estande do Rock in Rio do que em todo investimento feito no resto do Brasil. 

Você tem projetos de ativação no Rock in Rio, no The Town, que custam R$ 25 milhões. Essas marcas não investem isso no resto do Brasil. E o que é isso? É vaidade de diretor de marketing querendo aparecer mais do que o outro no quintal de casa. 

Isso são métricas históricas que são feitas para reforçar o mesmo segmento das mesmas pessoas. São métricas que não fazem sentido. Tive conversas com alguns diretores de empresas que fazem esse tipo de investimento e eles me dizem que as métricas justificam. Mas essas métricas estão erradas, porque não é possível que se justifique investir mais em um estande em um festival em São Paulo do que em todo o País. 

A questão dos grandes festivais virou o grande ralo do patrocínio. A gente não tem mais dinheiro para nenhum evento independente do País porque todo esse dinheiro das marcas vai para um grande ralo que são os festivais de música. E não é para deixar de ter os festivais de música. Eu já fiz festival de música, já participei da construção desse ralo também. Mas tem que equilibrar.

Quando a gente fala de novembro e Consciência Negra em Salvador, se fala da cidade que tem o maior número de artistas influenciadores criativos negros da América. Nada justifica não ter nenhum investimento aqui. A não ser comodismo e achar que fazer ação identitária, que trabalhar com a diversidade é convidar meia dúzia de pessoas negras para ir a um camarote no festival. Não é isso. Tem que colocar dinheiro e gerar prosperidade. 

No mês seguinte, dezembro, a Beyoncé foi a Salvador.

Exato. Depois de novembro, que a gente teve engajamento de mídia altíssimo, compartilhadas em todos os cantos do mundo, com nenhuma marca participando aqui, vem a Beyoncé e resolve fazer o lançamento mundial do filme dela em Salvador. Não foi um lançamento feito para o Brasil, foi lançamento mundial, com o seu próprio investimento. Ela veio para cá, não foi a nenhum outro país do mundo. Fez um evento aqui para os fãs. Lançou um filme aqui, mudou a localização do perfil dela por uma semana inteira para Salvador. Você sabe o valor disso com alguém que tem 300 milhões de seguidores? 

O que a Beyoncé viu que as marcas não viram? E por que as marcas não estão vendo? O que é que faz com que as marcas não vejam? Eu respondo. Racismo, pouca diversidade nas empresas, métricas viciadas para o mercado publicitário focado no eixo Rio São Paulo. É isso. Não tem segredo. E essa provocação eu faço muito à vontade. Eu trabalhei com todas essas marcas. O que eu estou dizendo aqui, eu disse para CEOs dessas empresas, para diretores, vice-presidentes. Porque não faz sentido. Não faz sentido.

A vinda da Beyoncé foi algo que vocês provocaram?

Veio dela, da equipe dela. Que Salvador fosse o lugar do mundo que ela deveria lançar o filme. O insight foi a capital afro, a quantidade de população negra, a potência e a pujança cultural e os fãs. O engajamento que os fãs de Salvador têm com a artista. E aí tem esse posicionamento e essa verdade de Salvador ser a maior capital da diáspora africana. 

Você nem desconfiava que ela viria?

Com o tempo teve algumas desconfianças. Mas a comunicação era o lançamento internacional do filme. Que para a gente já é ótimo. Imagina o lançamento internacional do filme da Beyoncé em Salvador! Já está maravilhoso. Se ela mandasse só a réplica do cavalo, já estava lindo. No dia, deu para entender que ela viria porque tivemos um pedido de apoio maior de logística e de segurança da cidade. E foi uma grande surpresa para todos, porque realmente ela fez tudo, ela pagou todas as taxas da Prefeitura, ela alugou centro de convenções. Ela montou tudo. Haviam uns 400 seguranças. Ela pagou o jantar, que tinha comida e bebida de graça, para 4.000 fãs. Foi um lançamento de marketing maior do que qualquer outra marca já fez. E estamos falando da Beyoncé, umas das artistas empresárias mais eficientes. Então ela não fez isso por acaso. Agora por que é que as marcas não veem isso?

Mas é possível que os donos dos eventos daquele mês de novembro não tenham feito o approach correto nestas empresas, já que normalmente elas precisam de tempo?

Certo, pode acontecer. Mas eles bateram na porta das empresas. Apresentaram o projeto. Eles não conseguiram passar para a escala de decisão. Eu tive conversas com muitos diretores por conta da minha postagem e alguns oferecendo R$ 25 mil, R$ 50 mil, como eu mencionei, porque estava em cima da hora e tal. Não acredito nisso, sinceramente. E sei que esses festivais fizeram um grande trabalho de apresentação, principalmente o Liberatum e Afropunk. Sei disso. Estiveram com mais de 30 clientes. Eu posso dizer com convicção que esses dois abordaram o mercado inteiro e não tiveram retorno.

Você mencionou que as marcas usam as métricas como justificativa. Quais são as métricas que elas usam e por que estão erradas?

Você tem métricas de impacto econômico, de venda. E aí São Paulo é a maior capital e desequilibra  com qualquer outra cidade em potencial de conversão e venda. Você tem métricas de engajamento em redes, e essas são muito difíceis também se você faz a comparação de um evento durante um dia com grandes artistas internacionais, e todas as próprias marcas colocando dinheiro para que tenha engajamento. A gente sabe que engajamento em rede social não é só engajamento que acontece naturalmente. Eu diria que 90% é pago por impulsionamento e por influenciadores. Então grande parte do engajamento de um grande evento é feito a partir das marcas que investem nele. Se você não tem as marcas investindo, o engajamento já cai. No caso de Salvador, o engajamento é altíssimo no nicho de Cultura Negra. E isso pode ser impulsionado como qualquer outro evento pode ser.

Então a provocação que eu faço é a de que os gestores de comunicação, de marketing, decisores das empresas busquem questionar por que que as coisas vem acontecendo como vem sempre acontecendo. Questionar a fórmula. Será que não vale você dar um passo à frente? Experimentar outras coisas? Será que isso não pode trazer resultados mais potentes e diferentes do que vem acontecendo?

Como mudar isso?

Isso tem a ver com a diversidade das pessoas que trabalham nas agências, das que trabalham na empresa. A diversidade nos últimos anos no Brasil foi vista de um jeito quase cenográfico. Vamos colocar mais uma, duas pessoas. Vamos colocar gente na publicidade. Mas os decisores mesmo, não tem. E as decisões estão amarradas em velhos modelos. 

Não consigo ver um caminho de crescimento para o Brasil que não seja investindo para diminuir a desigualdade social, não consigo enxergar. Se a gente consegue potencializar o mercado de consumo negro, por exemplo, a gente vai ter um mercado consumidor muito mais rico, porque estamos falando da maioria da população brasileira.

E como é que a gente não enxerga isso? E Salvador é um elemento importante porque é aqui que a maioria das narrativas negras surgem. Tem investimento público para isso. Lançamos agora o Carnaval Capital Afro.

Já era Capital Afro antes?

Já tem dois anos que trabalhamos nisso, mas esse ano de 2023 a gente realmente botou todas as fichas nisso porque vai ser a comemoração de 50 anos dos blocos afros.

Mas então as marcas podem dizer que patrocinam o carnaval Afro. 

As marcas podem dizer várias coisas. Aí eu peço que os gestores façam um exame de consciência e que evitem o cinismo. Uma das coisas para quem busca ter uma consciência social e racial deste país é identificar o próprio cinismo muitas vezes. A marca pode dizer o que quiser. Aposto que existem 500 justificativas para não financiar o novembro da consciência negra. O pessoal que coloque a mão na consciência e que se pergunte se está sendo cínico. O carnaval de Salvador tem patrocínio, e é disputado todos os anos. O Natal de Salvador tem patrocínio. A Virada de Salvador tem patrocínio. Tudo isso tem. Aí eu te pergunto, por que que o evento negro não tem? 

Você critica a falta de decisores negros nas empresas. Salvador tem 82% de sua população de pessoas negras. Quantas pessoas negras estão em posição de comando na prefeitura?

Pouquíssimas. De fato, eu estou falando isso do meu papel enquanto pessoa branca aliada. Quando eu cheguei aqui eu contratei mais de 20 pessoas pretas para a secretaria, porque não tinha. Mas ainda assim é uma pessoa branca que está fazendo esse direcionamento, e tudo bem ser, porque quem tem que reparar somos nós mesmos. A reparação cabe às pessoas brancas mais do que às negras. E o legado que eu pretendo deixar aqui é mudar esse sistema, mudar essa estrutura.