Em 1528, o conde e diplomata Baldassare Castiglione publicou O cortesão, uma obra cujo propósito era fornecer modelos de conduta ao cavalheiro.

O homem educado deveria mostrar-se moderado, modesto, humilde, cordial, além de identificar seu local na hierarquia social. Cabia ao cavalheiro aprimorar sua cultura, expandindo seu conhecimento para a literatura e as artes. Assim armazenaria um repertório de temas interessantes e curiosos, tornando-se uma companhia agradável. Estimulava-se o desenvolvimento de capacidades físicas e espirituais.

O livro, que considera a conversação uma forma de arte, chega a mencionar alguns chistes rápidos, a fim de que, de forma discreta, o cortesão pudesse alegrar o ambiente. Castiglione exalta, também, o silêncio, fundamental em certas ocasiões. O resultado desse proceder gentil seria angariar a admiração dos pares e a aceitação social.

O livro foi extraordinariamente bem-sucedido. No século XVII, o seguinte ao de sua publicação, O cortesão ganhou 125 edições nas mais diversas línguas. Um proto-best-seller que preconizava a elegância.    

Elegância nada tem a ver com dinheiro ou berço. Ela se relaciona a uma harmonia, a um requinte – discreto e natural – de comportamento, que se manifesta na forma de se vestir, falar e se apresentar.

Agora, o jornalista gaúcho Delmo Moreira acaba de lançar A Bem-Amada (Editora Todavia, 224 páginas), uma deliciosa e bem pesquisada biografia de Aimée de Heeren (née Aimée Sotto Maior de Sá) – uma brasileira que merece todas as reverências. (Ao morrer, em 2006, o New York Times publicou extensa matéria narrando seus feitos.)

O enredo poderia ser um romance. Aimée nasce no interior do Paraná, filha de um professor. Jovenzinha, muda-se com a família para o Rio de Janeiro, na década de vinte do século passado. Vai morar em Copacabana. A mãe, por conta de parentes ricos, levava Aimée e Vera, suas filhas, aos eventos sociais da então capital. As meninas aprendem francês. Fazem um passeio a Paris. Ganham cultura.

Esguia, morena e dona de olhos verdes, Aimée tinha uma beleza estonteante. Mais que isso, segundo diversas fontes, era encantadora. Uma beldade cheia de carisma e espírito.

Casa-se com Luís Simões Lopes, um primo endinheirado e influente. A família de Luís era muito ligada a Getúlio, que acabara de tomar o poder no Brasil. Luís torna-se chefe de gabinete do novo presidente. Getúlio, na época com 48 anos, não resistiu ao charme da jovem Aimée.

Em 1995, o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) publicou os diários de Getúlio Vargas, num trabalho organizado pela pesquisadora Celina Vargas do Amaral Peixoto, neta do ex-presidente.

Os diários, até então desconhecidos do público, revelam um romance furioso de Getúlio com uma mulher identificada apenas como “a Bem-Amada”. Os registros relatam as diversas escapadas furtivas e os riscos assumidos pelo chefe da nação para estar com a amante.  

As anotações pessoais assinalam o sofrimento com o término do affair (Getúlio confidenciou que, com o fim do relacionamento, ia sozinho ao local dos encontros amorosos, buscando aplacar a dor causada pela separação).

A “Bem-Amada”, não há dúvida, era o codinome de Aimée. Mas a história não para aí. Separada de seu primeiro marido – que seguiu fiel a Getúlio e veio a ser o fundador da Fundação Getúlio Vargas – Aimée deixou o Brasil em 1938 rumo a Paris. Sua presença foi rapidamente notada.

Passou a frequentar o grand monde europeu e norte-americano. Já em 1941, a revista Time a elegeu como uma das cinco mulheres mais elegantes do planeta. Casou-se pela segunda vez com um multimilionário americano, herdeiro de uma loja de departamentos. Dele, recebeu também o sobrenome Heeren. A partir daí, passou a dividir seus dias entre Nova York, Palm Beach, Paris e Biarritz.

Sentava-se nas mesas mais prestigiadas das festas mais disputadas do jet set internacional. Sua silhueta estampava a Vogue com frequência. Tornou-se amiga dos grandes estilistas, como Coco Chanel e Christian Dior. Não havia nada mais chique para um brasileiro do que encontrar Aimée no exterior e desfrutar de sua companhia em algum evento glamoroso – numa época em que o glamour estava distante da cafonice.

Constantemente assediada, teve uma carreira de amantes ilustres, de Orson Welles a Assis Chateaubriand – com este, viveu uma paixão fulminante.

Aimée não precisava do dinheiro ou da influência de seus namorados. Já tinha recursos e fama. Envolvia-se pelo prazer de estar com pessoas interessantes. Acima de tudo, gostava das pessoas. Colecionou amigos, que, como narra o excelente livro de Delmo Moreira, foram categóricos em reconhecer nela uma personalidade mesmerizante.

Aimée jamais expôs sua vida particular. Se vivesse nos nossos dias, não postaria suas intimidades no Instagram ou no Tik-Tok. Era reservadíssima. Quando, em 1995, sobreveio a notícia do romance com Getúlio, tornou-se alvo do acirrado assédio da imprensa, que buscava colher mais informações sobre o ocorrido. Aimée recusou qualquer entrevista. 

“As pessoas gostam de ler sobre crimes e sexo. Não tenho crimes em minha vida, e de sexo não vou falar,” a já senhora escapou docemente.

Dona de uma vaidade delicada até o fim da vida, sua verdadeira idade tornou-se um mistério. Até para os médicos mentia sobre o tema: “Tenho a idade que eles me derem,” dizia.

Com frequência ouvimos que “gosto não se discute”. Desculpe: discute-se sim. 

Há coisas cafonas, toscas, vulgares. Algumas reações são rudes e mal-educadas. A civilização – ainda bem! – avançou para reconhecer o belo, o harmônico, o pertinente, o cortês. Alguns temas são interessantes e engrandecedores; outros, desprezíveis e tolos. Faz parte da elegância distinguir o joio do trigo, e o norte para isso é a cultura – o único guia para se distinguir o belo do feio.

Muitos não atentam para a importância da cordialidade. Vale a pergunta: alguém já se arrependeu por adotar uma conduta elegante? Dir-se-á: Rimbaud, pela delicadeza, perdeu a vida. É verdade; porém é possível ser cortês mesmo nos conflitos. O exemplo da elegância serve como catequese. Gentileza gera gentileza, ensinou o pregador urbano. O exemplo arrasta.

O livro A Bem-Amada, além de retratar os costumes de uma época, deixa claro que elegância não se confunde com moralismo. Uma mulher pode ter uma lista de amantes e, ainda assim, servir como protótipo da fineza.

Acima de tudo, Aimée foi uma mulher elegante. Essa qualidade lhe garantiu acesso ao que quis. Até a beleza, sem a graça, tem valor limitado. 

Independente e segura, gentil e discreta, a lição de Aimée – para um mundo no qual o bom gosto se relativizou – é o de que a elegância segue como a grande prova da evolução humana.

Tomara que a profecia de Lulu Santos se concretize, e os tempos modernos sejam “um novo começo de era, de gente fina, elegante e sincera.”

José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados. 

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