Um movimento ganha cada dia mais a adesão de pais e mães: o fim do celular na escola. 

E em paralelo, há uma discussão mais ampla: quando entregar um celular a seus filhos, mesmo dentro de casa? 

O debate acontece em meio a notícias como o recente alerta do Colégio Dante Alighieri, em São Paulo, que se deparou com um grupo de Whatsapp no qual alunos foram expostos a conteúdos pornográficos, que incentivavam o suicídio e faziam apologia ao nazismo.

A regra para entrar no grupo era só uma: não contar para os pais.

“Os pais superprotegem as crianças e adolescentes no mundo offline e os deixam completamente desprotegidos no mundo online, dentro de seus quartos,” diz o pediatra e mestre em saúde pública Daniel Becker. 

Daniel BeckerO médico carioca é um dos mais de 20 especialistas ajudando o Governo Federal a montar um guia de orientação às famílias sobre o uso do celular na infância e na adolescência. 

“A gente está testemunhando um experimento científico global sem precedentes com as nossas crianças,” alerta o pediatra. 

A vida digital sem limites já gera efeitos colaterais: aumentos dos casos de miopia, depressão, síndrome do pânico e suicídios em todo o mundo. 

A boa notícia: quando as escolas proíbem o uso do celular, “já temos notícias de crianças brincando no recreio.”  

Nesta conversa com o Brazil Journal, Becker fala sobre a regulação das redes – e defende responsabilizá-las criminalmente. 

Pais e mães estão discutindo muito sobre proibir ou não o uso do celular nas escolas – e o uso puro e simples do celular pelas crianças. Como o senhor vê essas questões? 

A gente está testemunhando um experimento científico global sem precedentes. Estamos tirando das crianças as condições básicas do ser humano, que sempre determinaram o desenvolvimento. 

Há 6 milhões de anos, o homem se desenvolve da mesma maneira: andando na natureza, correndo, procurando comida durante o dia, em contato com a luz do dia, a luz natural, em movimento, se alimentando de comida natural, interagindo uns com os outros, conversando, interagindo, discutindo, negociando, colaborando. 

De noite, vamos para as cavernas e dormimos no escuro. Sem luz. Se você contar a existência humana, num reloginho de 12 horas, nós vivemos assim durante 11 horas e 57 minutos, mais ou menos. Nos últimos 3 minutos, a gente se assentou em cidades. Primeiro em aldeias agrícolas, 5 mil anos depois em cidades. Nos últimos 30 segundos ou 15 segundos, nós estamos nos confinando em quartos: sem contato humano, sem olhar para a luz do dia, sem dormir direito, sem se movimentar e comendo comida de plástico. 

Não vai dar certo. Não vai dar certo…. E as crianças estão cada vez mais assim. 

A gente já tem evidências concretas de como esse “experimento” está impactando a vida das crianças?

Já temos e eu te digo: é um experimento científico que não está dando bons resultados. Já existem evidências claras de perda cognitiva. Por exemplo, o Pisa global, que é a prova que você faz aos 15 anos, no final do Ensino Fundamental. As notas médias vinham subindo há 50 anos. Mas começaram a cair em 2012 e vêm caindo desde então. Não foi a pandemia que causou isso, porque a pandemia foi em 2020. E o que acontece em 2008, 2009, 2010 e 2011? Surgem as lojas de aplicativos, o celular com internet, os smartphones. 

Todas as empresas estão em contato contigo, podendo te mandar notificações, criando plataformas incríveis para você participar. A velocidade de banda da internet aumenta, surge a câmera frontal, as redes sociais começam a se disseminar. Os adolescentes começam a ganhar telefone, exatamente quando eles estão entrando na puberdade. Dessa maneira, eles ficam fixados nos seus telefones em vez de viver. 

A puberdade é um momento de reprogramação cerebral muito forte. Você tem não só mudanças hormonais e corporais – tem uma mudança cerebral. Você perde vários neurônios e outros vão surgindo, e muitas conexões novas vão sendo realizadas. É exatamente neste momento que o cérebro se desenvolve para a configuração adulta: um cérebro que consegue adiar a gratificação, colocar as tarefas na frente do prazer, planejar, executar com atenção, com foco. 

Esse tipo de tomada de decisões das tarefas, a gente chama de executivas. E para isso, ele tem que estar realizando certas tarefas também. Tem que estar, por exemplo, ganhando e perdendo no jogo de bola, tem que estar conversando com os amigos, sendo excluído e se incluindo, sendo empurrado e caindo e se levantando sozinho. Brincando, cooperando, se comunicando, se autoconhecendo, chegando em casa e tendo que fazer o dever de casa antes de pegar o celular. 

O cérebro não pode só ter essa gratificação permanente do videozinho, da rede social, não pode se acostumar a isso. A atenção fica totalmente fragmentada, porque são vídeos curtos, que são hiper estimulantes. A criança vai perdendo a capacidade de acompanhar uma linha de leitura, de raciocínio. A gente vai treinando o nosso cérebro para ficar desatento. É uma coisa impressionante. E a atenção humana é uma das habilidades mais importantes que a gente tem. Mas com o celular, a interação social vai reduzindo cada vez mais. 

Tem todos os outros riscos…  de comparação excessiva com corpos impossíveis, com vidas fantasiosas. E aí começam a aparecer os sinais. Começa a aumentar brutalmente a automutilação em meninas, síndrome de pânico, depressão, tentativa de suicídio. Os suicídios aumentaram 120% nesses últimos 10 anos, especialmente entre meninas. Enfim, os sinais são inequívocos de um grande adoecimento e mal-estar psíquico na juventude, na adolescência. 

Mas tudo isso é só por causa do celular?

Não são sinais associados somente ao uso do celular porque existem outros fatores, como o próprio confinamento em casa, a perda do sono, o consumo excessivo de comidas ultraprocessadas. Mas o celular é um dos principais fatores. 

A desconexão com os pais é outro problema seriíssimo. As crianças passam cada vez menos tempo com os pais e, quando tem o convívio, ele sofre a interferência também do celular dos pais, que não olham mais para a criança e ficam ali se entretendo, também viciados. 

O problema dessa coisa é o vício que ela provoca. 

A próxima fase deste problema do celular é a criança ou o adolescente cometerem crimes reais? Ataques a escolas, incentivo ao nazismo e ao preconceito? 

Entre os riscos da vida digital, de um lado temos a parte dos danos físicos. A miopia está aumentando muito, sedentarismo, fraqueza muscular, dificuldade de aprendizado, problemas emocionais. Tem um outro lado  de riscos inerentes ao uso do celular que é a exposição aos algoritmos das redes sociais. Ela está provocando uma crise mundial de negacionismo científico, de fake news. 

Antigamente um adolescente chegava em casa da balada e os pais se sentiam aliviados que ele tinha voltado bem e estava seguro no quarto. Hoje em dia, o perigo está dentro do quarto, porque os pedófilos, os estupradores, os golpistas, os chantagistas migraram para o mundo digital. Os pais superprotegem as crianças e adolescentes no mundo offline e os deixam completamente desprotegidos online. Eles estão ali sem supervisão. Como você pode entregar seu filho a um mundo tão perigoso sem supervisão? 

Por que estão tão desprotegidos? 

As plataformas digitais não têm nenhuma regulação no Brasil. No mundo inteiro já estão sendo regulados. Na Inglaterra, inclusive, com leis severas. Se a rede social não retirar o conteúdo criminoso, o gestor da plataforma pode ir preso e não só pagar multa. Aqui no Brasil, a rede fica totalmente impune. Eles deixam entrar crianças sem nenhuma verificação etária e ficam com uma conversinha ridícula de que não fazem porque seria quebra de privacidade. E você tem aí o lobby deles e de atores políticos dizendo que regular fake news é censura. 

Os golpes que estão sendo aplicados e os crimes que estão sendo cometidos só não têm punição nas redes sociais. No mundo real, esses crimes são todos passíveis de prisão. 

Eu mesmo estou sendo vítima de um golpe. Tem um grupo que usou minha imagem para vender livros prometendo que se a criança ler aquele livro vai se comportar, vai virar um anjo, vai parar de fazer birra, vai sair das telas – e é uma mentira horrível. Estão usando a minha imagem para fazer isso. E eu não consigo tirar porque a hospedagem do site é fora do Brasil. 

Os crimes e golpes migraram para o mundo digital e se a gente não supervisiona esse meninos e meninas, a gente está mais ou menos fazendo a mesma coisa que pegar uma menina de oito anos e dizer ‘vai, atravessa aí a Marginal, de olhos vendados, e eu não vou ficar olhando. Pode ir sozinha’. Ou o mesmo que entregar um carro a um garoto de 13 anos e deixar ele ir passear. 

Por que os pais estão sendo tão permissivos? 

Acredito que em grande parte é por falta de noção desses riscos. Quando você já sabe desses riscos e você nega esses riscos, segue nessa atitude, aí é negligência. 

Tem muita gente também viciada em celular, então eles não querem fazer a autocrítica de que eles mesmos não conseguem viver a vida real, sem conseguir sair daquela repetição, naquela permanência acrítica ali, nas redes e nos videozinhos do YouTube. 

Tem ainda os pais estressados, muitas vezes com muito trabalho, muitas vezes com longas horas no trânsito e chegam em casa e querem relaxar e tem ali um entretenimento agradável e gratuito. Muitas vezes não conseguem mais se preocupar com as coisas importantes e não conseguem dar prioridade às crianças. E elas precisam de prioridade. Mas dá trabalho demais. 

E essa é outra questão:  as plataformas viciam a gente propositalmente. Eles têm mecanismos, investiram milhões de dólares com neurociência em programação, para nos viciar. E quando a gente vai tentar tirar o celular de uma criança, ela vai resistir loucamente porque ela está viciada. É como tirar o saquinho de cocaína de um junkie, ele vai brigar. 

O mais fácil é seguir a regra básica de atrasar a entrega do celular. Entregar o celular quando estiver perto do ensino médio. Não com oito anos, mas com 14. 

‘Ah pai, eu sou o único que não tem’. Realmente, para eles, é muito duro ser o único que não tem. Por isso que a gente tem que construir comunidades de crianças que não tenham. A gente tem que se aproximar de famílias que pensam parecido. Por isso a importância dessas campanhas de pais pelo banimento de celular. Essas meninas e meninos vão estar acompanhados de outros meninos e meninas que também não vão ter o celular. 

E como as escolas, tanto públicas quanto privadas, estão lidando com o banimento do celular? 

O Rio de Janeiro foi pioneiro nessa questão. As escolas municipais são responsáveis pelo ensino fundamental 1 e 2. Se não me engano, estamos falando de 650.000 a 680.000 crianças, em 1.000 escolas cariocas. 

Primeiro eles decidiram proibir o celular na sala de aula. E agora mais recentemente, neste ano, proibiram o celular no recreio. E o que está acontecendo? Nós já temos notícias de crianças brincando no recreio, barulhentos de novo, com corre-corre, com fofoca, jogando bola. 

Várias escolas privadas também seguiram esse caminho, no Rio e São Paulo, e isso graças a movimentos, inclusive iniciados pelos pais, com a direção da escola sendo sensível. 

E as crianças estão felizes, porque o problema para elas é o FOMO (fear of missing out). O problema não é ficar com o celular, porque ela tem o instinto inato da brincadeira. O problema é o outro ter, porque ele pode estar fofocando sobre mim, e eu posso estar perdendo o meme. 

O recreio é o último reduto da brincadeira. Nem em casa as crianças brincam mais, porque ficam na televisão, no celular. Os recreios deveriam ser maiores e mais longos, porque a brincadeira não é só uma semente de bem-estar para a criança, também é uma semente de habilidades fundamentais que você não ensina na sala de aula mas se aprende no recreio. Resiliência, comunicação, solução de problemas, resolução de conflitos, cooperação, tudo isso a criança vai aprender. Criatividade, persistência, foco, atenção. A brincadeira é um direito da criança e é uma uma forma muito eficiente de aprender a viver em comunidade que a gente vai precisar na vida adulta, inclusive que o mercado de trabalho vai exigir da gente. 

Essa questão da regulação das redes parece que será muito difícil no Brasil. Seria melhor uma regulação global? 

Seria mas é praticamente impossível, porque a gente não consegue fazer isso nem em relação ao clima – que é uma situação de emergência mundial, de ameaça de extinção humana.

Além disso, nós temos hoje aqui no Brasil um predomínio de atores políticos com um poder muito grande de disseminação em redes sociais e que tratam qualquer regulação como censura.