Há um “revival” do menemismo na Argentina.

Começou com a sua morte, em 2021, quando após anos de um clima tóxico de “nós x eles”, mesmo seus críticos reconheceram nele um estilo de fazer política com certas regras que parecem ter se perdido com os anos.

Continuou com as eleições de 2023, em que após mais de 20 anos de ser condenado por todos, seu Governo foi elogiado por Javier Milei em sua campanha.

E finalmente, parece ter se cristalizado recentemente, quando a família Menem voltou a ser politicamente poderosa na Argentina: um de seus membros é Presidente da Câmara dos Deputados; outro é braço direito de Karina Milei – segundo seu irmão Javier, “La Jefa”.

O escritor Jorge Asís, um dos melhores intérpretes do fenômeno do peronismo, costuma dizer que, na Argentina, “cada governante é purificado pelo fracasso dos seus sucessores”.

Algo assim ocorreu com a imagem de Menem, objeto da recente série Menem: El show del Presidente, disponível na Prime Video.

Carlos Saúl Menem foi eleito em 1989 para um mandato de 6 anos, e reeleito em 1995 após uma reforma constitucional no ano anterior que permitiu a reeleição e encurtou o mandato para 4 anos, no auge do Plano de Conversibilidade (de 1 para 1) do peso com o dólar.

Menem ainda tentou obter a “re-reeleição” (no popular, a “rere”), amparado na controversa interpretação de que a contagem para a questão deveria começar a vigorar após a aprovação da reforma, de modo que ele poderia se candidatar a um terceiro mandato em 1999.

Quando a Corte Suprema argentina sinalizou que essa tese não seria aceita, Menem desistiu, na eleição que acabou sendo vencida por Fernando De la Rua.

Ao tentar voltar, nas eleições de 2003, liderou a apuração no primeiro turno, com 24 % dos votos, mas as pesquisas antecipavam que no segundo levaria uma “surra” de Néstor Kirchner – que fora o segundo colocado com 22 % dos votos – razão pela qual desistiu. O segundo turno acabou não acontecendo. Kirchner estava eleito.

Menem acabou sua carreira melancolicamente, anos depois, como Senador pela província de La Rioja, uma forma de ter imunidade parlamentar para não ser preso por conta de um processo de suposta corrupção associada ao contrabando de armas que se arrastou anos na Justiça.

O legado de 12 anos do casal Kirchner, combinado com o fracasso de Mauricio Macri e o desastroso Governo de Alberto Fernández, porém, acabaram, de certa forma, fazendo jus ao comentário de Asís, revalorizando, retrospectivamente, os 10 anos de Menem, visto hoje de forma mais benévola por diversos dos seus antigos críticos, tanto na na política quanto na opinião pública em geral.

A série está estruturada em 6 episódios associados a diversas fases marcantes de sua carreira, num formato que não chega a ser estritamente cronológico, pelo fato de que alguns dos temas de episódios específicos se desenvolvem ao longo de um período de tempo que faz com que, para quem assiste sequencialmente o conjunto da série, ela por vezes vá e volte um pouco no tempo.

Os episódios cobrem a disputa nas primárias presidenciais para as eleições de 1989; os primeiros anos da Presidência, particularmente tumultuados; as privatizações; o plano de conversibilidade; a mudança constitucional para poder ser reeleito; e a reeleição.

A série tem altos e baixos: o segundo episódio, por exemplo, tem uma temática com menos vigor que a dos outros – e alguns componentes um tanto quanto grotescos, como a exibição de garotas de programa seminuas passeando pela residência de Olivos, o equivalente ao o Palácio da Alvorada no Brasil. Mas, de um modo geral, é um retrato fidedigno do que foram aqueles anos.

Os dez anos de Menem deixaram um legado feito de “luzes e sombras”.

No lado positivo, inequivocamente, os 8 anos de estabilidade (ele foi eleito em 1989, mas a conversibilidade com o dólar só foi adotada em 1991), algo que, num país que enfrentou décadas de caos inflacionário, não tinha como não ser apreciado pela população; e, retrospectivamente, certos aspectos ligados à personalidade do Presidente.

No lado negativo, a tentativa bastante marota de tentar “driblar” a Constituição para obter uma terceira eleição e os descaminhos da política macroeconômica, nessa tentativa de angariar popularidade para “torcer o braço” da Corte Suprema com o peso do apoio popular.

Esses descaminhos acabaram, anos depois, levando ao colapso do “1 a 1” do peso em relação ao dólar, quando seu Governo já tinha acabado, mas em parte como consequência de erros de política econômica iniciados no segundo mandato.

Entre as controvérsias (uma vez que parte da sociedade simpatizava com as medidas e outra as execrava) estiveram o indulto aos militares pelos crimes de lesa-humanidade cometidos no período 1976-1983 (vendida por ele como uma tentativa de pacificar o país, mas criticada pelo sentimento de impunidade que ficou em parte relevante da sociedade) e as privatizações (que modernizaram parte do parque produtivo, mas algumas das quais feitas de forma bastante opaca, para utilizar um eufemismo que o leitor saberá compreender).

Não há como citar o nome “Carlos Menem” na Argentina sem que ele esteja associado à polêmica – e a série não foge a isso.

Ela é fiel aos fatos ou não passa de uma ficção? A controvérsia acerca dele se estende a essa interpretação – e alcança a própria família e seu círculo político mais próximo.

Tanto entre os seus parentes como entre seus antigos auxiliares ainda vivos – pois, pelo transcurso do tempo, vários já morreram – as opiniões se dividem, com alguns considerando que a série avilta a figura do ex-Presidente com seus traços ficcionais, e outros entendendo que esses traços são apenas parte da liberdade criativa do diretor e que, não obstante, a série retrata fielmente o que de mais importante tinha sua figura, bem como os elementos centrais do seu Governo.

Como a série expõe sem meias tintas episódios claros de corrupção, é mais ou menos natural que os personagens mais próximos daqueles negócios non sanctos estejam frequentando programas da TV argentina sugerindo que a série não é séria.

O único aspecto em que há clara unanimidade é em relação aos elogios à interpretação do ator principal, Leonardo Sbaraglia, que faz o papel de Menem numa atuação realmente notável. O ator combina os méritos dos maneirismos do personagem com os dos especialistas em maquiagem, que conseguiram recriar as famosas costeletas que fizeram de Menem uma figura folclórica da política argentina.

O diretor da obra declarou que era tal o comprometimento de Sbaraglia ao “entrar” no personagem que, conversando no set nos intervalos entre as filmagens, ele ficava em dúvida acerca de se estava falando com “Leonardo”, o ator e amigo, ou com “Carlos”, o Presidente.

A unanimidade e os elogios se estendem também ao ator Martín Campilongo (mais conhecido como “Campi”) que representa o ex-Ministro Domingo Cavallo, o “Mingo”, personagem central da política argentina naqueles anos e, obviamente, também da série.

Um episódio dramático da vida de Menem – exposto no último episódio da série – foi a morte do seu filho num acidente de helicóptero, que muitos interpretam ter sido consequência de tiros que a aeronave teria recebido.

Uma das pessoas próximas a Menem conta que ele relatava um episódio da cultura árabe (Menem era conhecido como “El Turco”) em que um Rei da antiguidade tem seu filho capturado pelas forças inimigas, que exigem sua rendição em troca da vida do seu filho.

Nas circunstâncias, segundo a lenda – repetida em mais de uma ocasião por Menem a seus íntimos – o Rei teria reagido enviando um emissário secreto ao encontro do filho com a mensagem do pai: “Me desculpe, mas esteja preparado para morrer”.

Lembremos que a Argentina foi vítima de dois terríveis atentados terroristas cometidos contra alvos judeus no seu primeiro mandato, um em 1992 – o atentado a bomba contra a Embaixada de Israel, com 29 mortos – e outro em 1994 – contra a Associação Mutual Israelita da Argentina-AMIA, com 85 mortos.

Na opinião de Zulema, a ex-esposa de Menem e mãe de seus filhos, o caso teria sido o “terceiro atentado” cometido no Governo do ex-marido, embora a Justiça nunca tenha conseguido provar de forma cabal o que aconteceu.

Muitos argentinos acreditam que tanto os dois atentados como a morte do filho teriam sido uma reação de grupos políticos do Oriente Médio, que teriam visto Menem inicialmente como “um dos nossos” – pelas posições terceiromundistas adotadas na origem de sua carreira – e se sentido traídos pelas famosas “relações carnais” que seu Governo estabeleceu com os Estados Unidos, com a guinada radical e o pleno alinhamento com Washington que caracterizaram o seu Governo.

Os anos Menem foram marcados, em termos de imagem pública, por uma combinação bastante kitsch – para o que ele contribuiu muito – de vida pessoal com ares de novela mexicana do próprio Presidente da República; consumismo exacerbado; e certa frivolidade de mau gosto, tudo isso sintetizado na expressão símbolo daquele período: “pizza con champagne”.

A série retrata bem esse lado da história, com a representação das famosas brigas públicas do casal presidencial (a esposa era famosa pelo seu temperamento forte); a expulsão da primeira-dama da residência oficial; as versões sobre os affairs sentimentais do Presidente; a sua paixão por dirigir uma Ferrari; etc. Havia um exibicionismo exacerbado, próprio do zeitgeist da época. Menem pronunciou, no começo da conversibilidade da paridade do peso em relação ao dólar, no início dos anos 1990, uma frase que ficou famosa: “Estamos mal, pero vamos bien”, querendo dizer que a situação (a “fotografia”) era ruim, mas a direção (o “filme”) era boa e o país iria sair da crise, como de fato melhorou nos anos seguintes. Nos 8 anos entre 1990 e 1998, o PIB argentino cresceu a uma notável taxa acumulada de mais de 55 %, com uma média anual de nada menos que 5,7 %. Já no seu último ano de Governo, em 1999, porém, o plano estava “fazendo água” e a Argentina entrou em recessão. 

Enquanto a economia ia bem, os escândalos envolvendo “Carlitos” eram tratados como algo folclórico pela maior parte da população.

Mas quando o desemprego aumentou e a crise se instaurou, os mesmos fatos que antes causavam sorrisos irônicos condescendentes passaram a ser motivo de muita raiva e de profunda irritação – e a popularidade de Menem despencou.

Hoje, com as paixões decantadas pela ação do tempo, o olhar pode ser algo diferente. Num depoimento concedido a propósito da série, Victor Bugge, fotógrafo oficial de diversos presidentes, declarou que “nos dez anos em que trabalhei com Menem, estando com ele praticamente todos os dias e várias vezes por dia, não vi ele de mau humor uma única vez.” Ele pertencia à classe dos políticos sedutores. Nos tempos atuais, não é uma virtude menor. Pode parecer uma frase excessivamente indulgente à luz das múltiplas denúncias de corrupção que marcaram os anos Menem. Talvez, porém, seja apenas o reconhecimento tardio do acerto da frase de Jorge Asís.

Fabio Giambiagi é economista.