Nada plana, a Terra gira. Essa mesma rotação incessante tomou conta do universo dos restaurantes, que se transformou em um fogão de vaidades. 

Hoje, além de cozinhar bem, um chef precisa ganhar destaque público. Até pouco tempo atrás, bastava receber uma avaliação dos jornalistas especializados em gastronomia para obter rápido reconhecimento. 
 
Desde que Grimod de la Reynière criou o primeiro guia era assim: a partir do início do século XIX, o Almanach des Gourmands aterrorizava quem tomava conta de um fogão. Também foi na França que, em 1900, surgiu o mais reputado guia mundial de gastronomia, o Michelin. (Antes de ser um guide cuilinaire, o Michelin foi lançado para ajudar a vender os pneus produzidos pela fábrica homônima. Era negócio paralelo.)

Mas até pouco tempo atrás, nenhum ranking tinha a força do “50 Best”, da revista inglesa Restaurant, capaz de chacoalhar o cenário mundial e incomodar o Michelin. Estar nessa lista virou algo disputado pelos chefs e restaurateurs mundo afora. A eleição é sempre contestada – os que ficam de fora criticam e questionam a metodologia usada, que reúne menos de 1.000 votantes no mundo, incluindo a crítica especializada, os próprios chefs e donos de restaurantes – mesmo assim virou um fenômeno.

A edição da América Latina já está em seu sétimo ano e, anunciada há poucos dias, tem cinco restaurantes de São Paulo e três do Rio.
 
Dois peruanos aparecem no topo: o Maido pelo terceiro ano consecutivo, seguido pelo Central. 
 
Estive no Maido e não me impressionou. Não que fosse ruim, mas a culinária me lembrou a de casas japonesas de São Paulo dos anos 1990. Uma sensação de déjà vu. Também não me encanta o segundo colocado, o Central, com garçons vendedores e uma cozinha bem sem graça. 

Embora acredite que esses restaurantes seguramente mereçam estar no ranking, tenho a certeza de que não é somente a qualidade da comida que define um cobiçado lugar para encabeçar a lista – Lisa Abend, na revista Time, alertou que muitos donos de restaurantes se valem de artifícios como um vultoso investimento em relações públicas internacionais, gratuidade a refeições de possíveis jurados, além de contar com forte apoio governamental, a exemplo do turismo do Peru, que costumava patrocinar viagens de jornalistas e influenciadores digitais a Lima para conhecer os restaurantes locais. 
 
Conclui-se que apenas uma cozinha de excelência talvez não seja o suficiente para assegurar uma posição de destaque no 50 Best.

Numa viagem recente ao Rio de Janeiro, visitei dois dos restaurantes cariocas mais bem colocados da lista, o Oteque e o Lasai, ambos de altíssima extirpe e contas que podem chegar a quatro casas à esquerda num jantar a dois. Sim, são investimentos em blue chips. Santa coincidência, ambos ficam na mesma rua de Botafogo, a Conde de Irajá, e têm estilos bem diferentes. 

Fiquei surpreso positivamente, já que as notícias econômicas apresentam a capital fluminense como uma cidade quebrada. Felizmente, isso não atingiu a boa mesa carioca. Ainda come-se muito bem no Rio!

No 50 Best latino, o Oteque, do paranaense Alberto Landgraf, teve ascensão vertiginosa: pulou 10 casas, indo do 33º lugar para o 23º. E o Lasai, de Rafael Costa e Silva, ficou em 24º e faturou também o título de Arte da Hospitalidade pela qualidade do ambiente e do serviço oferecidos. O Rio também faturou o 35º lugar com o Olympe, hoje tocado por Thomas Troisgros, filho do fundador do restaurante, o multimídia Claude Troigros. 

No caso do Oteque, Landgraf faz um trabalho de qualidade baseado na força dos pescados. Numa entrevista recente no meu podcast, ele fez questão de alardear que isso só é possível graças ao peixeiro Amaral, que segundo o cozinheiro, é alguém que trata com respeito peixes e frutos do mar. O mergulho oceânico do cozinheiro caipira de Cornélio Procópio, no interior do Paraná, é intenso — e ele mantém no restaurante um aquário para ostras e mariscos.

Trago na lembrança a ostra cozida no vapor com muita discrição para receber em seguida suco de maçã, picles de maçã verde e cerefólio. Também marcaram a memória o creme de aipim com barriga de porco curada e, no gênero ostentação, o atum bluefin que faz um veloz estágio na grelha para ser coberto de caviar beluga italiano. Poderia falar ainda da vieira fatiada grelhada no creme de castanha com o cítrico de cubinhos de laranja, o ouriço do mar fresco e na forma de uma espécie de bottarga com café… Prefiro me concentrar no cordeiro ao jus da própria carne com tomate-cereja desidratado e picles de echalote e nabo-roxo. Uma maravilha.

Encanta-me menos a culinária de Rafael Costa e Silva, embora também tenha ótimo padrão. Com influência da cozinha espanhola, Silva faz várias tapas ou petiscos numa linguagem nacional para abrir a refeição. Na noite em que provei a degustação, porém, havia logo no início um peixinho empanado um tanto gorduroso que preferi não comer. Seguro de si, o garçom não perguntou o porquê de devolvê-lo quase inteiro. 

 
Muitos dos pratos de Silva se valem da força dos vegetais, orgânicos bien sur, como o rolinho de batata-doce com picles de cebola-roxa e a excelente torrada com couve-rábano em fios, abacate e orégano fresco. Outro acerto é o pargo com pele cozido em baixa temperatura ao molho de limão, creme de leite e manteiga na companhia de funcho e brócolis, que merece aplauso. Na sobremesa, havia um inventivo sorvete de alcachofra-de-jerusalém com ganache e crocante de chocolate. Mas nesse caso, o muito espaço dado à criatividade não teve uma compensação em sabor e em prazer proporcionados ao cliente. Enfim, uma experiência com altos e algumas derrapadas.
 
Há ainda uma comparação a ser feita entre os serviços de vinhos do Oteque e do Lasai. Em ambos, há cartas com rótulos caros e bem selecionados, as duas nas mãos de sommeliers competentes na apresentação de brancos, tintos, espumantes e outras variações. Como tenho paixão por vinhos, costumo levar aos restaurantes garrafas que mantenho na adega de casa. E não me incomodo em pagar a taxa de rolha — o valor pedido pelos estabelecimentos para liberar o consumo. 
 
A rolha do Oteque está entre as mais caras do Brasil, senão a mais cara: R$ 160. Só não achei justo ser sobretaxado em mais 12% por esse serviço. Explico. A conta incluía a rolha, que também é um serviço, mais a taxa de serviço sobre ela. Infelizmente, essa dupla cobrança aconteceu também no Lasai, onde, pelo menos, se adota uma solução bem mais simpática para o cliente. Os R$ 120 da rolha são descontados caso se consuma um valor idêntico ou superior em outras bebidas alcoólicas. Há ainda a possibilidade de escolher qualquer vinho da carta, em sua maioria orgânicos e biodinâmicos, e anular o valor cobrado. Foi o bom negócio que fiz por lá.

Vale ainda uma lembrança. Dos endereços da alta gastronomia carioca, desta vez não entrou na lista um lugar que considero um dos melhores do Brasil, o Oro, de Felipe Bronze. Num papo que tive com o chef no meu podcast, Bronze afirmou que não investe mais para estar em rankings como esse. “Mas me incomoda ficar de fora. Os guias trazem clientes para o restaurante”, lamenta.

A lista completa: 

1. Maido (Lima, Peru)

2. Central (Lima, Peru)

3. Pujol (Cidade do México, México)

4. Don Julio  (Buenos Aires, Argentina)

5. Boragó (Santiago, Chile)

6. A Casa do Porco (São Paulo, Brasil)

7. El Chato (Bogotá, Colômbia)

8. Leo (Bogotá, Colômbia)

9. Osso (Lima, Peru)

10. D.O.M. (São Paulo, Brasil)

11. Quintonil (Cidade do México, México)

12. Isolina (Lima, Peru) 

13. Astrid y Gastón (Lima, Peru) 

14. Alcalde (Guadalajara, México) 

15. Pangea (Monterrey, México)

16. Sud 777 (Cidade do México, México)

17. Maito (Cidade do Panamá, Panamá)

18. Maní (São Paulo, Brasil)

19. Rafael (Lima, Peru) 

20. Mishiguene (Buenos Aires, Argentina)

21. Kjolle (Lima, Peru)

22. Harry Sasson (Bogotá, Colômbia)

23. Oteque (Rio de Janeiro, Brasil)

24. Lasai (Rio de Janeiro, Brasil)

25. Tegui (Buenos Aires, Argentina)

26. La Mar (Lima, Peru) 

27. Rosetta (Cidade do México, México)

28. Máximo Bistrot (Cidade do México, México)

29. Chila (Buenos Aires, Argentina)

30. Ambrosía (Santiago, Chile)

31. Nicos (Cidade do México, México)

32. Le Chique (Cancún, México)

33. Parador La Huella (José Ignacio, Uruguai)

34. De Patio (Santiago, Chile)

35. Olympe (Rio de Janeiro, Brasil)

36. Mil (Cusco, Peru)

37. 040 (Santiago, Chile)

38. La Docena, de Polanco (Cidade do México, México)

39. El Baqueano (Buenos Aires, Argentina)

40. Evvai (São Paulo, Brasil)

41. La Docena (Guadalajara, México)

42. Manu (Curitiba, Brasil)

43. Mocotó (São Paulo, Brasil)

44. Osaka (Santiago, Chile)

45. Elena (Buenos Aires, Argentina)

46. Gran Dabbang (Buenos Aires, Argentina)

47. 99 (Santiago, Chile)

48. Malabar (Lima, Peru) 

49. Mayta (Lima, Peru)

50. Narda Comedor (Buenos Aires, Argentina)
 

Arnaldo Lorençato é editor de gastronomia da VEJA São Paulo.