Um dos primeiros traços que chamam a atenção de quem começa a se interessar pela relojoaria é uma estranha uniformização: algumas das marcas mais relevantes têm mantido, há décadas, modelos com variações relativamente pequenas.
Isso acontece mesmo nos andares de cima: o Royal Oak, da Audemars Piguet, é um ícone – mas é feito (com variações) desde 1972. Comprado em massa, falsificado em massa. Idem para o Nautilus e para o Aquanaut, da Patek Philippe.
Ao mesmo tempo, marcas de luxo que propõem alguma inovação estética não raro descambam para o carnaval (penso aqui em Richard Mille, Hublot, Chopard…).
Muito por conta disso, surgiu nos últimos anos um novo player que cada vez mais desafia os participantes estabelecidos: as chamadas micromarcas.
Trata-se de marcas independentes criadas por entusiastas ou especialistas que têm sua própria visão da relojoaria, gostos e preferências. E maior liberdade para criar.
Algumas adotam referências vintage, em diálogo com tendências que marcaram época (como a francesa Baltic e a suíça Furlan Marri). Outras inovam pela irreverência (como a Studio Underd0g), pelo design ou complicações técnicas.
Mesmo do ponto de vista dos preços e da exclusividade há uma imensa diversidade. Microbrands de luxo, como as japonesas Naoya Hida ou a Masahiro Kikuno, apresentam produções artesanais, muito limitadas, e movimentos próprios.
Por sua capacidade de se comunicar com públicos que vinham se desinteressando da relojoaria, e pelos preços e originalidade, essas novas marcas estão ocupando um espaço cada vez maior.
Para os entusiastas, o advento das micromarcas é a prova de que a relojoaria não respira apenas pelo que tem de estabelecido, por elementos sinalizadores de status. De que há mais motivos para se interessar por relógios. De que há novas histórias.
No Brasil, o acesso às micromarcas ainda é restrito. A Herit, por exemplo, uma empresa filhote da tradicional relojoaria Impala, de São Paulo, tem trazido coisas interessantes (dentre elas a italiana Venezianico).
Mas também já há micromarcas brasileiras fazendo um belo trabalho, como a Roue e a Statera.
A Roue, criada em 2017, tem como sócios Alexandre Iervolino e Henrique Mendonça, ambos oriundos do mercado financeiro. A marca se inspira em modelos clássicos, que remetem à estética do automobilismo dos anos 60 e 70.
O design é todo de autoria de Alexandre, e os mecanismos, sempre a quartz, são japoneses. Para garantia de qualidade, a produção é mantida em Hong Kong.
A distribuição da Roue é feita exclusivamente pelo site e os preços dos relógios ficam entre R$ 3.600 e R$ 4.200. Seja pela faixa de preço, seja pelo uso de movimentos a quartz, a Roue pode passar uma primeira impressão equivocada. Nada mais injusto.
Primeiro porque, graças às opções feitas, os relógios são confiáveis, acurados e de fácil manutenção. Segundo, porque toda a produção é acompanhada de perto por Alexandre. Cada detalhe importa, e o acabamento é primoroso. Terceiro, porque, do ponto de vista estético, os relógios brilham: a recriação de elementos clássicos, de linhas sóbrias, com toques modernos, inclusive pela combinação de cores, é extremamente bem-sucedida. A relação entre funcionalidade e estética, um tema eterno na relojoaria, é extremamente bem resolvida nos Roue.
Já a proposta da Statera Watch Co. é diferente. Com a produção limitada a 300 peças por ano, a empresa – fundada em Maringá em 2022 pelos amigos Antonio dos Santos e Rafael Guimarães – procura combinar tradição relojoeira e mão de obra artesanal, buscando referências em elementos naturais, apresentados de forma muito discreta.
O design limpo das peças, com caixas redondas desenhadas por Angelique Chappuis (uma respeitada especialista em habillage, aquilo que os relógios têm de não mecânico) e usinadas e finalizadas a mão no Brasil, é valorizado pela beleza dos mostradores, para os quais se adota a tradicional técnica do esmalte Grand Feu. Antonio e Rafael começaram como autodidatas, mas, seja para a esmaltação, seja para outros aspectos, buscaram especialização na Suíça. O resultado é verdadeiramente impressionante, com um design ao mesmo tempo limpo e intenso.
A Statera utiliza movimentos mecânicos feitos na Suíça e ajustados e montados no Brasil. A partir de 2026, ela deve anunciar um movimento próprio. Os preços são mais elevados, na faixa de R$ 18.000 a R$ 20.000. As vendas são predominantemente pelo site.
Roue e Statera representam bem essa nova tendência da relojoaria. Cada uma tem seu perfil, sua proposta, sua perspectiva autoral. E em ambas o “olho do dono” é essencial. Seus produtos têm qualidade, personalidade e histórias a contar. Por isso mesmo as duas marcas tem recebido atenção de veículos especializados, aqui e no exterior.
Diante da mesmice que cada vez toma mais espaço, e num mundo sem escolhas que mais afasta do que aproxima as novas gerações da alta relojoaria, não pode haver notícia melhor.
Otavio Yazbek é sócio da Yazbek Advogados e aficcionado em relógios.