BOSTON – Em países como o Brasil, a população de baixa renda e a classe média emergente representam a maior parcela do mercado consumidor. Mas ter sucesso comercial nesse segmento não é fácil.
Dois grandes exemplos, em setores bastante distintos, são o Nubank e a Sorridents, como explica Michael Chu, professor da Harvard Business School.
Especialista no estudo de negócios na base da pirâmide e inclusão financeira, Chu diz que é essencial prover soluções para dificuldades já sentidas por esse público, sem a necessidade de criar novas demandas ou educá-los para o consumo de algo novo.
A tecnologia abriu novas possibilidades ao reduzir o custo marginal dos investimentos. O governo tem também a sua parte, diz Chu, sobretudo na regulação – e dá como exemplo positivo a abertura do sistema financeiro brasileiro.
“O Brasil é um ótimo caso de reguladores olhando para o sistema e buscando maneiras de abri-lo à competição,” afirmou Chu, durante a entrevista concedida em seu escritório, em Harvard. “As autoridades fizeram isso de maneira que pode ser exemplo para os outros países, porque abriram o campo para novos entrantes.”
Nascido na China, Chu cresceu em Montevidéu, no Uruguai, e mais tarde se radicou nos EUA. Foi executivo da gestora KKR e participou da criação de startups e bancos de microcrédito em diversos países, muitos deles na América Latina. Em Harvard, dá o disputado curso Business at the Base of Pyramid – no qual, regularmente, recebe empreendedores brasileiros.
Leia a seguir uma síntese da conversa – que pode também ser assistida na íntegra no vídeo acima.
Sua pesquisa se concentra em negócios na base da pirâmide, focados na população de baixa renda e na classe média emergente. Qual o segredo para um empreendedor ou uma startup ter sucesso nesse mercado?
Esse mercado é formado pelos 70% que estão abaixo dos 15% ou 20% mais ricos da pirâmide socioeconômica, mas acima dos 10% que são indigentes ou próximos da indigência. Então, em muitos países, como o Brasil, estamos falando de uma parcela que corresponde à maior parcela do poder de consumo agregado, acima daqueles que estão no topo. Para ter sucesso nesse público, é preciso estar atento a alguns fatores.
Você está fornecendo algo para o qual existe demanda? Você está oferecendo uma solução para um problema que já está sendo sentido? Se sim, você não vai precisar educar ninguém. Estará respondendo a uma necessidade.
Outro ponto essencial é ser acessível, tanto no sentido financeiro quanto no sentido físico. As pessoas focam muito no preço como fator determinante de acessibilidade. Isso não está completamente correto. O determinante da acessibilidade é, na verdade, o fluxo de caixa das pessoas.
Dou um exemplo. A penetração do celular é enorme, mesmo entre os mais pobres. No entanto, eles pagam o preço mais alto do sistema pelo minuto de conexão e isso, claro, deve-se aos cartões pré-pagos. Os cartões pré-pagos são um exemplo muito claro de como não é o preço absoluto que importa, é a acessibilidade dentro do fluxo de caixa das pessoas. O que isso significa é que você precisa ver a realidade pelos olhos daqueles a quem deseja servir.
O que o governo pode fazer para incentivar negócios que beneficiem essa parcela da população?
O Brasil é um ótimo caso de reguladores olhando para o sistema e buscando maneiras de abri-lo à competição. Fizeram isso de maneira que podem ser um exemplo para os outros países, porque abriram o campo para novos entrantes.
Quando os reguladores são realmente bons, eles estabelecem as regras certas. Em relação à inclusão financeira, o que o Brasil fez foi abrir o jogo. Não disseram como jogar. Estabeleceram regras de prudência e transparência, mas desagregaram as peças do sistema financeiro tradicional e facilitaram a entrada de novos investidores.
O resultado líquido é que as barreiras de entrada foram reduzidas, e a competição é fundamental para chegar ao melhor modelo.
O senhor estudou o caso do Nubank. Qual o impacto que esse tipo de inovação pode trazer para a economia e por que é difícil vê-la surgir dos bancos tradicionais?
É muito difícil para os bancos tradicionais terem feito um Nubank por causa de algumas coisas. Em primeiro lugar, no Brasil, os cinco grandes têm sido lucrativos ao longo de décadas e não importa quais sejam as circunstâncias – com hiperinflação, sem hiperinflação, com turbulência política, sem turbulência política.
Esses bancos sempre foram lucrativos. Têm sido lucrativos com um modelo que foi construído ao longo dos anos, que era basicamente de expansão da rede física, com uma infraestrutura enorme.
Tiveram a favor o fato de não serem pressionados em termos de lucros e terem muito pouco incentivo para melhorar a proposta de valor para o público. Foi o público que teve que se adaptar ao banco, e não o banco se adaptar ao público. Mas isso teve uma grande mudança por causa da entrada na era digital.
Por quê?
No mundo digital, temos três características básicas. Primeiro, a capacidade das máquinas de processar grandes quantidades de informações, cada vez mais rápido e cada vez mais barato. Segundo, a internet permite transportar informação de um lugar para outro praticamente de graça. Terceiro, a introdução de smartphones.
Isso mudou totalmente a economia, trazendo uma nova proposta de valor com custo totalmente diferente. Foi o modelo que se adaptou ao cliente – e não forçou o cliente a se adaptar ao banco.
Em um banco tradicional, é necessário construir a infraestrutura, que é o sistema de agências em todo o Brasil. Já o Nubank gastou muito dinheiro para construir a plataforma e transformá-la em algo lucrativo. Mas depois de construir essa plataforma, o custo marginal é muito baixo.
A implicação para a inclusão financeira é enorme. Com o custo marginal baixo, é possível fornecer serviços para uma quantidade enorme de pessoas.
O senhor estudou também o caso da Sorridents, uma franquia de atendimento odontológico. Quais as lições oferecidas pela história de sucesso dessa rede?
O sistema de saúde brasileiro tem cobertura universal e oferece assistência odontológica gratuita aos seus cidadãos. Como isso se traduz na realidade? Você tem que esperar muitas horas para ser atendido quando você viu que o serviço pode não ser bom, o equipamento pode não ser tão bom assim.
A Sorridents tem um modelo que antecede a era digital. É um modelo de loja física. Se você precisar extrair um dente, não pode fazê-lo digitalmente, certo? O que primeiro me atraiu foi entender como seria possível prestar atendimento odontológico de qualidade e caber no bolso da maioria das pessoas.
Uma coisa é que com o atendimento odontológico, se você tem muito trabalho a ser feito na boca, você pode espaçar, não precisa fazer tudo de uma vez. Então isso significa que você pode espaçar o atendimento de acordo com o fluxo de caixa das pessoas.
Em segundo lugar, se eu quero fornecer um serviço de primeira classe, preciso ter equipamentos de primeira classe, então como faço para obter um preço que me permita tornar isso possível? A Sorridents consegue isso com volume nas compras, consegue a redução de preço. Mas se você precisa de volume, precisa de muitas clínicas, então eles optaram pelo modelo de franqueados.
Um fator adicional é que o Brasil tem a maior produção de dentistas do mundo. Então a Sorridents também foi uma ótima solução para os dentistas, que podem gastar 99% do seu tempo fazendo odontologia sem se preocupar com a administração das clínicas. São várias peças que se encaixam no modelo de negócio – sem falar no trabalho de seus fundadores, a dentista Carla Sarni e seu marido, Cleber Soares.
Falando sobre inclusão financeira, qual é a sua opinião sobre as possibilidades oferecidas pelas moedas digitais? Essa é a próxima fronteira para as fintechs?
Há muitas fronteiras para as fintechs, e a moeda digital será uma das peças. Hoje vemos as moedas digitais implodindo, e o Bitcoin vive oscilando entre picos e vales. Agora estamos no Velho Oeste, porque trata-se de um conceito muito novo – e muitos novos conceitos passam por esse estágio até que as coisas se resolvam.
O importante é que a tecnologia por trás das moedas digitais tem a capacidade de dar um salto sobre o que hoje são muitas camadas diferentes nas transações, reduzindo ineficiências. Acredito que, por causa dessa mudança subjacente, haverá um grande impacto na inclusão financeira, porque veremos a redução de custos.