Com uma das Constituições mais longas do mundo e um pendor irrefreável para judicializar cada minúcia da vida diária, o Brasil precisa urgentemente entender o funcionamento de seu Supremo Tribunal Federal, talvez mais do que qualquer outra instituição. 
 
É no Supremo que os verdadeiros abusos do Executivo ou do Legislativo encontram seu freio institucional, e é de lá que saem avanços sociais que o Congresso — por omissão, conservadorismo ou falta de coragem — se recusa a legislar. 
 
Assim, é surpreendente que só agora, depois de 128 anos de funcionamento, o STF seja objeto de um livro que esmiúça seu funcionamento, escancara suas nuances, e o traduza para o brasileiro médio, que vive longe de Brasília mas é diariamente impactado por ele.

“Os Onze — O STF, seus bastidores e suas crises”, recém publicado pela Companhia das Letras, só foi possível graças à competência dos jornalistas Felipe Recondo e Luiz Weber.
 
Felipe cobre o Supremo há 12 anos. Trabalhou para Folha e Estadão antes de fundar com outros colegas o site JOTA, que quase imediatamente se tornou referência na cobertura jurídica do País. Ano passado, Felipe já publicara “Tanques e Togas”, que descreveu o papel do Supremo durante a ditadura militar.
 
Luiz foi seu colega no Estadão. É bacharel em Direito, mestre em Ciência Política e doutorando em Direito Constitucional.  Desde o julgamento do mensalão, os dois já falavam que aquela história dava um livro.
 
É o trânsito destes profissionais no Surpremo e a relação de confiança que estabeleceram com ministros e assessores — a base do jornalismo tão desmerecido nos dias de hoje — que produz um livro assertivo, com detalhes e bastidores que se esperam de uma boa biografia.
 
O livro chega num momento em que o Supremo é criticado pelo que faz e pelo que deixa de fazer, e em que a independência dos juizes face à pressão pública é testada a cada semana.
 
Assim como não há seres humanos perfeitos, não há juizes perfeitos — e, sim, alguns parecem mais imperfeitos que outros.
 
É bem provável que ali chegue amanhã um ministro “terrivelmente evangélico” ou um ex-juiz, mas, como o Poder Moderador do Brasil, a instituição tem que se aperfeiçoar e fortalecer.  Goste-se ou não do Supremo, um País são suas instituições.  Sem elas, só há messianismo e desordem.
 
Abaixo, dois excertos do livro.
 


“Achei que seria preso”, exagera o ministro Luís Roberto Barroso, num desabafo após tensa reunião no gabinete da Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Por suas declarações e pelo tom das críticas aos militares presentes, cogitou a punição de sua impertinência. Impertinência registrada pelo general Sérgio Etchegoyen, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, que se surpreendeu com o ímpeto do ministro contra suas evasivas.

Barroso e Etchegoyen mantinham uma relação institucional fria e distante, permeada pela suspeição. O general não era facilmente decifrável, sempre com suas longas inspirações antes de responder às investidas contra ele. Barroso, por seu turno, desconfiado da máquina de inteligência que Etchegoyen comandava de dentro do Palácio do Planalto, costumava dizer: “Não sei o que ele pensa, mas ele sabe tudo o que eu falo”.
 
Os dois sentaram frente a frente na comprida mesa retangular da sala da Presidência do TSE na noite de 23 de outubro de 2018, uma terça‑feira, a cinco dias do segundo turno das eleições para presidente da República. (…) No dia anterior fora divulgado o vídeo em que um militar da reserva — Antônio Carlos Alves Correia — xinga e faz ameaças a Rosa Weber: “Essa salafrária, essa corrupta, essa ministra corrupta e incompetente”.
 
Segundo o militar, Weber não deveria ter recebido em seu gabinete representantes do PT e do PDT que contestaram a candidatura de Jair Bolsonaro com base na notícia de que uma rede de empresários havia financiado o disparo de informações falsas em favor da campanha do capitão.
 
A ministra, avessa às redes sociais e, portanto, alheia às ameaças, recebeu ligações solidárias sem saber a que vinham. Quando alguns de seus assessores lhe encaminharam o vídeo, ela não se alterou. Naquele mesmo dia, na reunião do gabinete de crise montado para acompanhar as eleições, anunciou que encaminharia uma representação à Polícia Federal contra o autor dos ataques. Parecia que o assunto estava resolvido. 

Ao final da reunião, da qual participavam os ministros do TSE, como Fachin e Barroso, chegou a mensagem de que o presidente do Supremo, Dias Toffoli, estava a caminho. Queria falar com os presentes. Barroso não esperou por ele e foi para seu gabinete. Fachin e Weber permaneceram. Toffoli descreveu um cenário sombrio. 
 
Lembrou que o então comandante do Exército, general Villas Bôas, tinha 300 mil homens armados que majoritariamente apoiavam a candidatura de Jair Bolsonaro. Por sua vez, o candidato e seus seguidores, incluindo militares, colocavam sob suspeita a lisura do processo eleitoral, em especial as urnas eletrônicas. O TSE, portanto, deveria ser claro e firme em seus posicionamentos. Era preciso demonstrar o perfeito funcionamento das instituições.
 
Quem ouviu as palavras de Toffoli ficou com a sensação de que as suspeitas de instabilidade não eram chifre em cabeça de cavalo: de fato, era de incerteza o clima sobre os rumos do país.
 
 
***
 

“Nós éramos parceiros aqui dentro.”
 
Assim, com o verbo no imperfeito, Lewandowski lembrou da relação com Ayres Britto. A aliança se deteriorou durante os preparativos para o julgamento do mensalão. “Ele me traiu.” 
 
Ambos se recordam da tática dos Republicanos, bando que os juntou a Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia para fazer frente ao grupo majoritário — e adversário — que havia no tribunal: se um daqueles quatro fosse atacado em plenário, outro saía em defesa, mesmo sem concordar com o argumento jurídico do aliado. Britto costumava capitanear a reação. 
 
Mas as alianças no Supremo são anéis de vidro. O que os julgamentos da constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa e da Lei de Anistia uniram — Britto e Lewandowski votaram juntos —, a ação penal do mensalão desfez.
 
Do mesmo modo, o abismo entre Lewandowski e Gilmar Mendes no julgamento da AP 470, o mensalão, aparentemente intransponível, foi aterrado depois da Lava Jato. Barroso e Mendes, inconciliáveis se o assunto é direito criminal, aproximam‑se quando o que está em jogo é a economia, mais precisamente o liberalismo econômico.
 
O mesmo Barroso, em dupla com Fachin na missão de preservar ações da Lava Jato, se afastou do colega para minar o direito de greve de servidores públicos, por exemplo. E foi Fachin, ladeado por Rosa Weber na visão pró‑trabalhador, que se apartou da colega quando esteve em julgamento a constitucionalidade da execução da pena após condenação criminal em segunda instância — ela contra, ele a favor. Weber, que divergia de Alexandre de Moraes sobre a constitucionalidade do ensino religioso confessional nas escolas públicas, votou com o colega quando se discutiu o decreto de indulto assinado pelo presidente Michel Temer.
 
A multiplicidade de combinações no plenário de onze integrantes escancara um Supremo diverso em sua composição, abrangente em suas atribuições e temáticas, maleável no trato com a jurisprudência e seus precedentes. Desde a promulgação da Constituição de 1988, 25 ministros foram nomeados para o tribunal. No atual stf, o adversário de hoje pode ser o aliado de amanhã.