Um jovem pianista carioca morto pela repressão da ditadura militar argentina dos anos 70 deixou como legado um disco considerado por muitos uma obra-prima do instrumental brasileiro.
Trata-se de Tenório Jr. e seu álbum Embalo, um dos mais emblemáticos da era do samba-jazz – o gênero gestado nas noites do Beco das Garrafas, no Rio, na década de 60, e que misturava a cultura, o ritmo e a pegada do samba com a crescente influência do jazz, especialmente do bebop.
Único álbum liderado pelo pianista em sua curta carreira, Embalo conta com uma seleção dos melhores músicos de uma das mais prolíficas eras da música nacional.
Para se ter uma ideia, Milton Banana, Raul de Souza, Édson Maciel, Paulo Moura e J.T. Meirelles brilham no disco, que revela Tenório como um compositor criativo e um verdadeiro virtuose do piano.
Misturando claras influências do jazz, da bossa nova, do samba e da gafieira, o disco gravado em 1964 é marcado desde o início pelo ritmo contagiante e pela performance ajustada do conjunto.
A primeira faixa – intitulada “Embalo”, composta pelo próprio Tenório e arranjada por Paulo Moura – já mostra inspiração clara do bebop, com pegada brasileira e destaque para a sessão de sopros.
Outras faixas trazem versões inspiradas de composições de medalhões como Tom Jobim, Baden Powell, Vinícius de Moraes, Bud Shank e Johnny Alf. Em “Inútil Paisagem”, por exemplo, Tenório inova no arranjo ao alterar os papéis dos instrumentos.
“Ao invés de optar pela função tradicional, em que o piano, instrumento que goza de possibilidade harmônica, tocaria a harmonia enquanto os sopros tocariam o tema, Tenório se encarrega da execução do tema, promovendo, com o naipe de sopros, um diálogo, no qual Tenório ‘pergunta’, e os sopros ‘respondem’”, explica o pesquisador Vinícius Mendes Rodrigues no artigo Embalo: sobre a obra única de Tenório Jr.
Em Fim de semana em Eldorado, o sambinha romântico de Johnny Alf vira um samba-jazz energético, tocado por um power trio de piano-baixo-bateria e um show de Milton Banana no ritmo.
Mas a faixa que mais se destaca do disco é seguramente Nebulosa, outra composição de Tenório. Também com a formação piano-baixo-bateria, o tema alterna momentos melódicos e improvisos do piano, com a bateria ditando um ritmo empolgante, bem brasileiro.
No texto da contracapa do disco, o pianista explicou sua visão para Embalo.
“Tudo me foi creditado, desde a escolha dos temas e arranjos até os detalhes mais técnicos, como estúdio, engenheiro de som, capa etc. Isto contribuiu definitivamente para que eu me entregasse a diversas experiências com tipos diferentes de conjunto, tentativas minhas de arranjos, enfim, uma série de incursões num terreno que eu havia apenas tateado”.
E, para quem quiser conhecer a energia de Tenório Jr. ao vivo, o pianista também deixa sua marca em outro álbum clássico (e pouco conhecido) da música brasileira, A arte maior de Leny Andrade, gravado na boate carioca Manhattan Club em 1964. Arranjado pelo pianista, o disco traz a voz de Leny em seu auge e sua característica mistura de bossa nova e jazz.
A introdução do disco já diz a que ele veio. “Meia noite. Copacabana. E a arte maior de Leny Andrade,” diz o apresentador do show, seguido de um solo de Tenório. O repertório não podia ser mais clássico, com temas como Samba do avião, Amor de nada, Vivo sonhando e uma super versão de There will never be another you.
“A música desses artistas era de tal forma à frente do seu tempo que, ainda hoje, os músicos ouvem e se influenciam por ela,” diz Rodrigues.
Em sua curta carreira, Tenório tocou com artistas como Chico Buarque, Gal Costa, Lô Borges, Milton Nascimento, Beto Guedes, Nelson Angelo, Joyce, Edu Lobo, entre outros. Infelizmente, perdeu a vida de forma trágica em 1976, aos 36 anos, como muitos jovens numa época de repressão e ditaduras militares em todo o continente.
Tenório Jr. desapareceu em Buenos Aires, onde participava de uma turnê de shows como pianista da banda de Vinícius de Moraes e Toquinho. Depois de uma apresentação no Teatro Gran Rex, foi preso e assassinado pela rede clandestina de repressão do regime militar argentino.
Na porta do quarto de Vinícius, Tenório havia deixado um bilhete que dizia: “Vou sair para comer um sanduíche e comprar um remédio. Volto logo.”