Quatro temas têm incomodado Airon Martin, o criador e diretor criativo da Misci. Para ser sincero, são cinco – mas um deles, curiosamente, lhe agrada.
O primeiro é a comparação que fazem de seu trabalho com Jacquemus, o jovem designer francês dois anos mais velho que Airon, que assim como o brasileiro criou uma marca independente combinando um talento fora do comum para o marketing com uma visão única para as peças, desfiles e campanhas, despertando desejo e criando uma legião de brand lovers.
“O produto que eu faço é superior em qualidade, mesmo reconhecendo que o marketing dele é extraordinário,” Airon disse ao Brazil Journal. “Ele constrói desejos como ninguém, mas também tem a vantagem de operar dentro de um lifestyle francês que o mercado global adora consumir. Construir desejo com uma marca brasileira, no entanto, é um desafio completamente diferente.”
O segundo incômodo é o hype em cima da tendência do quiet luxury.
“Para mim, o luxo silencioso é o luxo que não tem nada a dizer. E se não tem nada a dizer, não tem identidade. Sem identidade, não existe propriedade intelectual. E sem propriedade intelectual, não é luxo. Eu tenho dúvidas sobre esse conceito, porque acho que marcas que não têm nada a dizer não conseguem criar conexão com o consumidor, por mais que tenham acabamento ou materiais incríveis,” diz Airon.
“O fast fashion tem evoluído tanto que é assustador. Hoje você encontra roupas bem-acabadas na Zara graças à tecnologia e ao dinheiro investido. Como competir com isso?” Para ele, a resposta está na propriedade intelectual: ideias, criação e narrativa. “O luxo tem que mudar completamente para lidar com a evolução do fast fashion.”
O terceiro incômodo foi uma conversa que teve na última temporada de moda em Paris, quando Airon foi a um evento com a empresária Natalie Klein. O CEO da NK Store, que os acompanhava, teria feito, segundo ele, o seguinte comentário: “Quer quebrar uma empresa? Contrate um diretor criativo.”
Airon ficou possesso.
“Essa visão é um equívoco. Como no Brasil a gente não tem uma identidade de moda muito consistente, o mercado realmente acha que o criativo vai matar a empresa.”
O quarto ponto é a transparência na cadeia produtiva e a valorização de quem de fato cria as inovações. Airon critica o apagamento de cientistas e técnicos fundamentais na inovação de materiais na moda. Cita o uso do couro de pirarucu pela Osklen, a marca de Oskar Metsavaht, com uma tecnologia de curtimento vegetal desenvolvida no Brasil.
“A tecnologia de solda e curtimento vegetal foi desenvolvida por cientistas brasileiros, mas ninguém fala sobre eles. O primeiro desfile que o criador dessa tecnologia foi convidado a assistir na vida foi o meu. Minha abordagem é valorizar quem merece reconhecimento e deixar claro que eu não conto essa história sozinho. Não é só ter menos ego, é ética. O mercado precisa mudar, e quem não se adaptar vai ficar para trás.”
Por fim, o último incômodo é sobre autenticidade e críticas.
“Já me incomodei mais com haters, mas hoje vejo que muitos deles são do mercado e se sentem ameaçados. É até legal ver os mais antigos se mexendo. Eles postam coisas contra mim, mas só me ajudam. Cobro caro pelo meu feed, e eles fazem de graça esse trabalho. Só me preocupo em falar o que acredito, e isso é o suficiente. Meu público e minhas ideias me validam.”
Para Airon, as críticas e a autenticidade são parte de um diálogo maior sobre identidade e propósito, algo que tem raízes em sua própria história.
Airon nasceu em Sinop, no Mato Grosso, o coração do agronegócio brasileiro. Criado pela avó Francisca, pela mãe Sonaly e três tias (Simone, Sueli e Suene), ele cresceu à beira da BR-163, uma rota de transporte de grãos onde a vida girava em torno de um bar que à noite se transformava num inferninho.
Foi esse ambiente diverso, resiliente e ancorado na força das mulheres que moldou a visão da Misci, que Airon fundou há seis anos. O reconhecimento continua vindo: em outubro, o estilista entrou na lista dos mais influentes da indústria, compilada pelo The Business of Fashion.
Antes de chegar ao design, Airon foi jogador de vôlei (o melhor levantador do Mato Grosso) e atuou no Clube Pinheiros, mas abandonou o esporte aos 18 anos por falta de altura. (Ele mede 1,79.)
Trabalhou vendendo carros, estudou Direito, e arriscou medicina em Buenos Aires – até se encontrar no Instituto Europeu de Design (IED), em São Paulo. Foi ali que a Misci surgiu, como um projeto de TCC. O trabalho questionava: “Como criar uma marca que represente o Brasil?”
Airon criou uma jaqueta, uma calça, uma cadeira e uma banqueta. Ganhou nota 9,5 – além da atenção da Cartel 011, a multimarcas onde meses depois lançou sua primeira coleção com R$ 7 mil levantados junto a friends & family.
A repercussão foi imediata, atraindo mídia e formadores de opinião. O menino que desenhava vestidos na infância finalmente havia se encontrado.
O nome Misci vem de “miscigenação”. A marca expressa isso no casting de seus desfiles, com 70% de modelos negros, indígenas ou trans, refletindo a realidade da família de Airon: “um avô preto retinto e tias de diferentes tons de pele, e com o mesmo pai e mãe.”
Para Lais Sangalo, amiga e mentora de comunicação de Airon, “o tom crítico, sarcástico e bem-humorado dele reflete o que a Misci representa,” e conquistou clientes como Oprah Winfrey, Emicida, Bruna Marquezine, Rosalía, Sam Smith, Malu Borges, Carlinhos Maia e Peggy Gou são alguns nomes.
A Misci cresceu 265% em 2024 e planeja abrir uma loja no Rio de Janeiro este ano, além das três unidades de São Paulo. Outro plano é buscar um investidor para explorar setores como fragrâncias, gastronomia, interiores e hospitalidade.
Sua abordagem estratégica – influenciada por uma conversa com Sébastien Kopp, o fundador da marca francesa Veja – não é ser uma marca “brasileira” no mercado internacional. “Não quero vender brasilidade. Quero vender luxo. Primeiro, desejo e qualidade; depois a brasilidade.”
“O Airon conseguiu coisas inacreditáveis para uma marca tão jovem,” diz Costanza Pascolato, a consultora de moda mais influente do Brasil. “Ele transformou a Misci em um estilo de vida que dialoga com os valores de um Brasil moderno e criativo, e segue o mesmo caminho que vejo em marcas internacionais.”