Por quatro décadas, 3 mil programas e com uma voz imortalizada em canções, ela dominou os lares brasileiros recebendo os convidados em seu sofá e cunhando frases como “uma gracinha”, “lindo de viver” além da farta distribuição de “selinhos”.
Nem tudo, no entanto, foram flores no sofá e na vida de Hebe Camargo, como mostra a minissérie Hebe, cujo segundo capítulo (de uma série de 10) será exibido hoje à noite na Globo.
Das dificuldades familiares à violência doméstica, do assédio sexual ao aborto, da indignação à resignação — todos os temas que confrontam a condição humana encontram eco nesta minissérie que cuida com carinho da memória da apresentadora.
A série teve como ponto de partida o filme “Hebe – a estrela do Brasil” e procura focar na ‘volta por cima’ de Hebe em diversas situações, mas o mergulho no trágico tem cores fortes e nítidas. A única certeza é a de que Hebe foi e continua a ser uma das poucas figuras televisas a romper todas as barreiras, tornando-se o rosto mais icônico, perene e polêmico da televisão brasileira — e batendo a audiência da Globo, então toda poderosa num mundo pré-streaming.
Hebe Maria Monteiro de Camargo nasceu em Taubaté em 8 de março de 1929 e brilhou até 29 de setembro de 2012. Sua vida foi um espelho do Brasil e de suas mudanças ao longo de décadas.
A filha da católica Esther Magalhães de Camargo e do músico Sigesfredo Monteiro de Camargo, o Fêgo, era a mais nova de sete irmãos, e desde menina acompanhava o pai em suas apresentações em igrejas e salões de festa. Passou por dificuldades e humilhações na infância, sobretudo resultantes de sua posição social, mas não perdeu a alegria de viver e de soltar a voz. O apreço pelo microfone foi cultivado acompanhando o pai, quando este se mudou com a família para São Paulo para integrar, como violinista, a orquestra da Rádio Difusora.
Nos anos 40, as rádios eram o principal meio de comunicação do Brasil, e os shows de calouros e apresentações musicais, os programas de maior audiência.
Foi num destes, na rádio Excelsior — que pertencia à família Ramos, então dona da Folha de S. Paulo — que Hebe ganhou o estrelato. Mais que isso: tornou-se amante por oito anos de Luís Ramos, o herdeiro do grupo que, posteriormente, seria adquirido pelos Frias.
Esse período foi um tempo de descobertas para Hebe, tanto da sexualidade como de seu potencial como artista, consagrando-se com seus cabelos escuros como a “Moreninha do Samba”. Foi nesta condição de estrela ascendente do rádio que acompanhou a comitiva liderada por Assis Chateaubriand, o Chatô, para buscar no Porto de Santos os equipamentos que inauguraram a televisão brasileira no dia 8 de setembro de 1950 — as câmeras, com a marca da RCA, vieram dos Estados Unidos.
Hebe só não foi o primeiro rosto na estreia da TV, cantando o difícil e ufanista hino criado pelo poeta paulista Guilherme de Almeida, porque no dia da gravação preferiu ficar nos braços de Luís Ramos em Santos. (A honra, então, coube à sua amiga Lolita Rodriguez.)
É esse amor pela vida, com uma dose certeira de senhora do seu destino, o que marca a minissérie do começo ao fim, mesmo em meio aos duros embates que, poucos sabem, Hebe travou contra a censura.
É a Hebe dos bastidores, e não apenas a do famoso sofá, exposta em sua vida pessoal, que entra em cena no roteiro de Carolina Kotscho (filha do jornalista Ricardo Kotscho e autora do bem-sucedido “Os dois filhos de Francisco”, que narrou a saga de Zezé de Camargo e Luciano).
A direção é de Maria Clara Abreu e a direção artística, de Maurício Farias, casado com a atriz Andrea Beltrão, que interpreta Hebe e busca imprimir não semelhança física, mas emoção ao personagem em sua fase adulta; a Hebe adolescente é Valentina Herzage.
Desde o primeiro aborto — do filho que teria de Luís Ramos (teria outros dois espontâneos mais tarde) — Hebe se dividiu entre realizar o desejo de sua mãe, que a queria como uma ‘respeitada dona de casa’ e o de ser uma estrela. Namorou e ganhou joias de Peppino Matarazzo, o primeiro filho do Conde Francisco Matarazzo, então o homem mais rico do Brasil. Ao término do namoro, devolveu as joias e fez questão de registrar o feito em cartório: não queria ser acusada pelos Matarazzo de haver seduzido Peppino por dinheiro.
A “Moreninha do Samba” decidiu se tornar loira seguindo o modelo das estrelas de cinema de Hollywood na qual se inspirava.
Traindo a visão do primeiro diretor da televisão brasileira, Cassiano Gabus Mendes, de que seu rosto e seu corpo (peitos avantajados numa época em que o silicone não havia entrado na moda) não eram adequados ao veículo, ela acabaria se tornando símbolo da televisão. Chegou ao topo quando decidiu deixar tudo para trás e se casar com o empresário Décio Capuano (na minissérie, interpretado por Gabriel Braga Nunes), pai de seu único filho, Marcello (vivido brilhantemente por Caio Horowics). A vida doméstica, no entanto, duraria pouco.
Nos tempos do ie-ie-iê e da Jovem Guarda de Roberto Carlos, amigo e ídolo, Hebe era assediada por emissoras e a possibilidade de extraordinários ganhos a fez trocar um marido para quem lugar de mulher era em casa pelas luzes da TV Record de Paulo Machado de Carvalho. Brilhou como nunca.
Mas apesar de ter assinado seu primeiro contrato de trabalho aos 14 anos (ganhando independência financeira), Hebe não sabia ser independente dos homens. Com o empresário Lélio Ravagnani, viveu 29 anos, entre altos e baixos, tapas e beijos.
Da TV Record para o SBT, e deste para a Rede TV!, depois do retorno Hebe não parou mais. Tornou-se a garota-propaganda com maior faturamento do país — mais de US$ 100 milhões/ ano quando o real valia um dólar — e entrou de salto alto na defesa de aposentados e pensionistas contra o aumento que os constituintes se deram em 1987.
Mesmo sendo malufista declarada, atacou a corrupção. Fez mais: foi a primeira a debater as questões relacionadas à AIDS e levou para o seu sofá aqueles que chocavam a censura ainda resistente mesmo com o fim da ditadura militar – a exemplo da transsexual Roberta Close e a sempre e eternamente debochada Dercy Gonçalves, que mostrou os peitos no programa. Isso lhe valeu a demissão ao vivo na Band, então sob o comando de Walter Clark, que havia deixado a emissora dos Marinhos para cuidar da emissora dos Saad.
Hebe — a cara do Brasil e de suas contradições — foi mãe, matriarca e matrona da TV, o meio que ajudou o Brasil, hoje infelizmente fragmentado, a se conhecer e se unir.
É mais que apropriado que sua memória seja celebrada pela Globo.