O escritor francês Georges Bernanos (1888-1948) era um sujeito intimidador, com voz de trovão, quase um metro e noventa de altura, um basto bigodão louro e temperamento explosivo. Locomovia-se com auxílio de duas bengalas por conta de um grave ferimento sofrido durante a Primeira Guerra Mundial que inutilizou uma de suas pernas.
Católico, crítico do establishment francês do entreguerras, era amigo de Charles de Gaulle e escreveu obras como Sob o Sol de Satã (1926), transformada em clássico do cinema francês nos anos 80 e premiada com a Palma de Ouro em Cannes, em 1987.
O austríaco Stefan Zweig (1881-1942) era franzino, comedido nos gestos, falava baixo e foi amigo de Sigmund Freud, Rainer Maria Rilke e Thomas Mann, entre outros luminares de seu tempo. Prolífico, deixou uma vasta produção literária e ensaística que abrange romances como Amok, biografias fenomenais de personagens históricos como Mary Stuart e Joseph Fouché, contos como Mendell dos Livros e sua obra mais ambiciosa, O Mundo que Eu Vi, um libelo humanista que retrata a Europa da Belle Époque e o colapso desse modelo de civilização.
Esses dois personagens tão distintos, habitantes do grand monde da intelectualidade global das primeiras décadas do século XX, se conheceram pessoalmente no verão de 1942, em um encontro único, quase surreal. O acontecimento se deu numa fazenda no distrito de Cruz das Almas, na cidade mineira de Barbacena.
Absolutamente inusitado, o evento é descrito em seis parágrafos do livro Trincheira Tropical – A Segunda Guerra Mundial no Rio, de Ruy Castro, recém-lançado pela Companhia das Letras (compre aqui). Seus desdobramentos ocupam outros cinco parágrafos. No entanto, este é provavelmente o momento mais comovente e carregado de simbolismo do livro.
O encontro na fazenda de Cruz das Almas, pertencente a Bernanos, é apenas uma pequena fração de um volume de quase 400 páginas. No entanto, é um trecho onde se vê, a partir do exílio de dois personagens grandiosos, todo o choque, o inconformismo, a impotência e a resignação frente ao caos que engolfava o planeta.
Juntos, Zweig e Bernanos simbolizam o embate dos valores da civilização contra a pusilanimidade, o oportunismo e a corrupção moral, religiosa e intelectual que abriram as portas do inferno na guerra mais brutal e mortífera de todos os tempos.
A surpresa do encontro, a melancolia que desperta e as reações subsequentes trazem para os dias de hoje a dimensão que o Brasil e mais especificamente o Rio de Janeiro assumiram como base estratégica no Atlântico Sul e refúgio de desterrados pelas perseguições provocadas pela Segunda Guerra.
Em Trincheira Tropical, Castro resgata o papel importantíssimo que a então capital assumiu no xadrez global, enquanto o Estado Novo cometia seus abusos por aqui e era cortejado pelos países do Eixo e pelos Estados Unidos para se posicionar no conflito.
Trincheira Tropical é um livro magistral. Como fez Honoré de Balzac em sua novela Ferragus, em que Paris se torna o personagem principal por onde circulam figuras humanas, Ruy Castro transformou o Rio em personagem, com seu desfile de celebridades, políticos, intelectuais, jornalistas, artistas e também escroques e oportunistas de toda espécie, tendo como pano de fundo uma catástrofe mundial.
Nesse panorama fascinante, o contraponto entre Bernanos e Zweig brilha pela singeleza e pela dimensão do que está em jogo. Os dois personagens aparecem pela primeira vez no capítulo batizado como O País do Futuro, nome tirado do título de um livro de Zweig sobre o Brasil que o recebeu. A apresentação se dá algumas dezenas de páginas antes da narração do encontro em Barbacena, e retrata em profundidade os dois escritores.
Bernanos, com sua exuberância febril, é um homem tentando achar um lugar para si no mundo. Encontrou refúgio – e alguma paz de espírito – nos confins de Minas, numa tentativa tosca de se tornar fazendeiro, mesmo sem nunca ter qualquer traquejo ou vocação.
Zweig, judeu apátrida que perdeu as nacionalidades austríaca e alemã e nunca conseguiu se adaptar à cidadania inglesa que conseguiu como foragido do nazismo, vivia um momento diferente. Cético e deprimido, não disfarçava a amargura, melancolia e desconforto em um mundo onde julgava não ter mais lugar.
No encontro com Bernanos, não disfarçou seu estado de espírito. Tanto que, ao deixar Zweig na estação de Barbacena, onde o austríaco tomou o trem para o Rio, o francês comentou com um amigo: “Esse homem está morrendo”.
Dias depois, em 23 de fevereiro de 1942, Zweig se suicidou com sua mulher, Lotte, na casa em que viviam em Petrópolis. Em um texto publicado em O Jornal e reproduzido em Trincheira Tropical, Bernanos escreveu sobre o suicídio do colega de profissão:
“A humanidade pode prescindir do sr. Stefan Zweig, assim como de qualquer escritor. Mas não pode ver sem amargura reduzir-se o número de homens obscuros, anônimos, que não tendo jamais conhecido as honrarias nem os lucros da glória, se recusam a consentir na injustiça, vivendo do único bem que lhes resta: a humilde e ardente esperança.”
É uma lição para tempos catastróficos onde a ignorância, o autoritarismo, a mentira e o egoísmo subvertem os valores mais básicos da civilização. Em Trincheira Tropical, em meio a seu caleidoscópio de personalidades, Ruy Castro mostra como o Brasil e o Rio de Janeiro se tornaram um front decisivo na defesa desses princípios.
Daniel Hessel Teich é diretor executivo do Grupo IstoÉ.