Quando me deparei com a série Fundação na Apple TV+, fiquei receoso. Como profundo admirador da obra de Isaac Asimov, temia que fosse mais uma adaptação tosca de um grande clássico, ofendendo a originalidade da obra.

Mas movido pela curiosidade, resolvi dar uma chance – e não me arrependi.

Fundação é a principal obra de Asimov. Ela narra a ascensão e queda de um império galáctico e a tentativa de preservar todo o conhecimento humano acumulado até então, ao mesmo tempo em que busca promover a criação de um novo império.

Concebida originalmente como uma trilogia, com o primeiro volume escrito em 1951, a obra foi expandida com mais quatro volumes adicionais. Considerada por muitos o maior marco da literatura de ficção científica, Fundação inspirou os grandes clássicos do gênero, como Duna, Guerra nas Estrelas e outros.

Embora haja inúmeras diferenças entre a obra literária e a série, surpreendentemente a história central foi preservada, mantendo as principais mensagens e conceitos mesmo após quase 100 anos de diferença entre as versões. 

E para alívio dos saudosistas, a série oferece uma nova perspectiva: a semelhança das idiossincrasias vividas em seu enredo com as que encontramos no ambiente corporativo contemporâneo, cada vez mais complexo e multifacetado. Um dos principais temas da série é a sucessão, um tópico sempre relevante no mundo dos negócios.

O cerne da trama de Fundação gira em torno de um campo fictício chamado “psico-história”, no qual um grupo de estudiosos matemáticos cria um processo de leitura contínua do futuro, permitindo prever com precisão o fim da civilização em que vivem.

Hoje, quantas empresas realmente mantêm a disciplina necessária para entender o futuro? Quais produtos ou serviços os clientes continuarão a desejar ou a valorizar? Em que cenário estaremos, além das metas do ano atual ou do próximo exercício social? 

Enxergar além do presente e se manter aberto a mudanças é o grande desafio. O planejamento de longo prazo, com a capacidade de se adaptar e evoluir, é o que pode garantir a sobrevivência no futuro.

No universo de Fundação, o chefe do Império Galáctico é o Imperador Cleon. Seu império é governado por uma dinastia de imperadores clones, e o processo decisório está ligado ao sistema de clonagem, que assegura que os imperadores sejam geneticamente idênticos, mantendo a continuidade do poder e a estabilidade do império. Nesse modelo, qualquer imprevisibilidade ou flutuação nas decisões é eliminada, garantindo uma “estabilidade contínua”.

Por mais paradoxal que isso possa parecer para os modelos sucessórios contemporâneos, ainda é algo presente em muitas corporações. Muitas empresas mantêm processos seletivos padronizados, com foco na busca por “especialistas eternos” do setor, que atendem a pré-requisitos teóricos baseados em demandas já conhecidas, sem se preocupar em compreender as necessidades emergentes ou as incógnitas do mercado. 

Repetir o passado incessantemente não é, definitivamente, a chave para o sucesso futuro – nem para os Cleons, nem para os empresários.

Na gestão contemporânea, de fato possuímos mais controles em nossas rotinas, controles que garantem o funcionamento e a segurança de todo o ecossistema. No entanto, o controle excessivo, ou “o processo pelo processo”, pode nos afastar do que realmente importa, seja no relacionamento com clientes, na busca pela eficiência ou, principalmente, no trato com os funcionários.

Na obra de Asimov, uma parte significativa do declínio do império ocorreu devido ao distanciamento de seu povo. O Poder Imperial estava imerso em atividades e rotinas que o afastaram da população, propagando apenas a ideia de um poder perpetuado, sem um real entendimento das necessidades e demandas de seus liderados.

Em muitas organizações, a negligência da realidade e a falta de comunicação genuína com o mercado geram distorções e desvios de foco.

Através de uma narrativa filosófica e futurista sobre o declínio de um império, Asimov abordou questões como poder, conhecimento e ciência, convidando à reflexão sobre como podemos moldar o futuro.

Ao longo dos sete livros – ou por meio das duas temporadas da série – é um privilégio poder usar essa obra para refletir sobre as empresas de hoje.

Pedro Thompson é ex-CEO da Yduqs e da Alliança Saúde.