A agitação na porta do Grand Palais sinalizava que este era mesmo o desfile mais aguardado desta temporada de moda: Tilda Swinton, Pedro Pascal, Penelope Cruz, Micaela Coel, Margot Robbie, Dua Lipa e Nicole Kidman – vestida com uma singela camisa branca e calças compridas – foram algumas das celebridades que deram o ar da graça.
A excitação não era à toa. Tratava-se da estreia de Matthieu Blazy, o belga de 41 anos que assumiu a tarefa de levar adiante o legado da casa fundada há mais de cem anos por Gabrielle “Coco” Chanel.
Ça va sans dire, Chanel estabeleceu o modo de vestir e a elegância moderna da mulher do século passado, um legado continuado por Karl Lagerfeld a partir de 1983, quando ele ressuscitou o que era então uma marca ultrapassada. E o fez de maneira brilhante.
Depois da morte de Lagerfeld – também conhecido como “o kaiser”, uma alcunha que ele odiava – as coleções da casa (duas de alta costura, duas de prêt-à-porter, uma cruise collection e uma “métiers d’art”) entraram em modo randômico.
Virginie Viard, a assistente e braço direito do kaiser por 25 anos, substituiu o chefe e passou a reeditar – com competência técnica mas sem brilho – um repertório que era sucesso garantido: o tailleur de tweed, os chemises de seda, os sapatos bicolores, as bolsas em couro matelassê com alça de corrente dourada, as pérolas, os broches camélia…
Virginie fazia uma ou outra atualização sobre o que o mestre já havia feito.
Resultado: a marca Chanel ficou bege com alguns respingos de cor, junto com o velho dourado e as inevitáveis pérolas. Mas em junho do ano passado, Virginie anunciou sua saída – alguns dizem que foi demitida – e as coleções passaram para as mãos, várias, do ateliê da maison. Logo começaram as especulações sobre o sucessor.
Seria Phoebe Philo, a inglesa ex-Chloé e ex-Céline, a nova Chanel da Chanel? Seria o italiano Pierpaolo Piccioli, que estava na casa Valentino? Apostaram até que seria a volta em grande estilo do anjo caído John Galliano, que anos atrás arrasou na Christian Dior mas colocou tudo a perder com declarações racistas – e foi cancelado. (De lá pra cá, Galliano foi reabilitado, mostrou mais uma vez seu talento na Maison Margiela, mas pediu para sair e anda sumido novamente.)
Em dezembro, a companhia controlada pela família Wertheimer, com os irmãos Alain e Gérard à frente, anunciou o nome de Matthieu.
Nota histórica: foram outros irmãos Wertheimer, Paul e Pierre, que se associaram a Coco para lançar o emblemático Chanel N°5, a fragrância que fez de mademoiselle uma milionária muito além dos sonhos mais extravagantes que ela tinha ao abrir sua primeira boutique em Deauville, um sofisticado balneário francês, às vésperas da Primeira Guerra Mundial.
OK, mas de onde surgiu Matthieu? Bem, ele nasceu em 1984, filho de um homem das artes e de uma historiadora, e estudou moda em Bruxelas. A Bélgica tem tradição em moda, e tem Antuérpia o centro onde surgiram designers prestigiosos como Dries Van Noten, Ann Demeulemeester, Martin Margiela e Raf Simons.
Matthieu trabalhou sob a direção desses dois últimos, assim como com Phoebe Philo, na Céline – até ser contratado pela holding do luxo Kering como diretor artístico da Bottega Veneta, outro bastião da Alta Moda que precisava de um choque de juventude.
Matthieu acabou sendo conhecido como “o mágico de Milão” por sua habilidade em combinar tradição, técnica, criatividade e apelo comercial. Sem dúvida, essa foi a credencial que o levou a ser designado para os domínios de Mademoiselle na rue Cambon. Uma investida da marca centenária para finalmente se comunicar com a Geração Z e além, sem perder o “chanelismo” jamais.
Na estreia de hoje, ele apresentou mais do que se esperava, chacoalhando os rígidos paradigmas da casa.
Em um Grand Palais decorado como o Sistema Solar, Matthieu abriu o desfile com uma releitura do clássico tailleur, apresentado agora como ternos de alta-alfaiataria com jaquetas curtas de ombros estruturados e fechamento com apenas dois botões dourados. As calças têm pregas, as saias têm fendas. Vestidos de corte em viés são combinados com cardigãs de seda. E as bolsas são carregadas nas mãos pelas alças douradas de maneira quase displicente.
A silhueta é solta, malemolente. Desliza sobre o corpo. Ao mesmo tempo é sexy, com decotes generosos e pernas escapando pelas fendas das saias, além das transparências e tramas vazadas revelando mais do que escondendo. O comprimento é bem abaixo dos joelhos – Mademoiselle dizia que “nada é mais feio que as articulações”, por isso odiava a minissaia – e a camisa branca imaculada é ampla, solta, como a usada na plateia por Nicole Kidman, uma das embaixadoras da marca.
A infalível combinação preto & branco aparece tanto nos vestidos de noite esvoaçantes, como no trench coat e na jaqueta de inspiração marinheiro, uma tradição vinda dos arquivos da marca.
A Chanel tem um prédio num subúrbio de Paris com vários ateliês de trabalho artesanal. Matthieu aproveitou tudo que podia: plumas, penas, bordados, tweeds confeccionados em teares, aplicações etc.
Não teve medo de usar cores. O vermelho é flamejante, o azul noite é denso e até as estampas – que Lagerfeld desprezava – surgem em saias longas coloridas.
Os acessórios nunca foram tão extravagantes. Explosivos broches de flores, brincos grandes, gargantilhas douradas, cascatas de pérolas. As bolsas foram um capítulo à parte: o couro matelassê da vovó, a sacola dourada, o envelope em preto e branco, grande e listrada em branco e vermelho, pequena em formato de ovo…
E há franjas por toda parte. Quebrando a sisudez de um mantô de lã, dançando na barra da saia de um tailleur que já foi comportado e sobretudo em saias rodadas emplumadas. Como a colorida e luminosa usada pela top preta Awar Odhiang – uma canadense nascida em um campo de refugiados na Etiópia – que praticamente sambou, encerrando o desfile com uma apoteose. Para Matthieu – de jeans, tênis e camiseta branca sob um cardigã preto – só restou correr para o abraço e receber os aplausos da plateia, toda de pé.
Foi bonito. E merecido. Mais uma vez a Chanel despertou de um sono profundo. Ao menos por enquanto.