Em 2008, o médico e gerontólogo Alexandre Kalache assumiu o posto de consultor sênior da New York Academy of Medicine após ter dirigido por mais de uma década o departamento de envelhecimento – sim, isso existe – da Organização Mundial de Saúde, em Genebra.
Da janela do seu escritório, em frente à parte norte do Central Park, Kalache lembra que dava pra ver como as desigualdades sociais atingiam de forma impiedosa a expectativa de vida.
“Se eu olhasse para a esquerda, dois quilômetros dali em direção ao Upper East Side, aquela zona milionária, dos museus, do Guggenheim, de tudo que é sofisticado, a expectativa de vida na época chegava a 90 anos. Mas se eu olhasse para a direita, também a dois quilômetros dali, que inclui o bairro do Harlem, a expectativa de vida era de 69. Essa desigualdade é brutal e acontece aqui também. É como olhar para a favela da Rocinha a partir de São Conrado”, Kalache disse ao Brazil Journal.
Com mais de 40 anos dedicados ao estudo da longevidade, o cientista ainda se surpreende com o espanto causado pelo rápido envelhecimento do Brasil. Em 2050, serão cerca de 68 milhões de brasileiros com mais de 60 anos, mais que o dobro do atual.
“Envelhecer é bom, morrer cedo é que não presta,” diz o médico carioca, que hoje preside o Centro Internacional de Longevidade Brasil e atua em mais de uma dezena de conselhos nacionais e internacionais que tratam do tema, entre eles, o do Fórum Econômico Mundial.
Os dados do último Censo surpreenderam as pessoas com a velocidade do envelhecimento da população brasileira. Isso não foi uma novidade para o senhor, que vem alertando sobre o tema.
O que mais me surpreende em relação aos resultados do Censo, que ainda são preliminares, é que as pessoas tenham ficado surpresas. É simplesmente o óbvio. Temos cada vez mais pessoas chegando aos 60 anos – e não necessariamente bem. No Brasil, se envelhece mal e precocemente.
De acordo com as previsões não só do IBGE, vamos dobrar esse contingente que atualmente é de cerca de 33 milhões para 68 milhões de pessoas em 2050. Não se trata de um futuro distante. Estamos falando de pessoas que hoje têm 33 anos.
Sempre digo: envelhecer é bom, morrer cedo é que não presta. O Brasil está nesse caminho de forma acentuada há um bom tempo. Nos últimos 25 anos, as taxas de fecundidade estão em queda no País – ou seja, o número de filhos que uma mulher tem no final de sua vida reprodutiva está abaixo da taxa de reposição.
Se um casal não tem dois filhos, ele não está sendo reposto. É toda uma geração com taxas de fecundidade de, em média, 1,7 filho. Nas regiões metropolitanas brasileiras, esse índice chega aos níveis mais baixos da Europa, de 1,2.
Como essa redução na fecundidade tem impactado as famílias?
Muitos casais simplesmente decidiram não ter filhos. É despesa alta, a mulher não pode ter uma vida profissional plena… Então, o que está acontecendo no Brasil é que são mulheres com menos de oito anos de educação que estão tendo mais filhos.
De acordo com dados ainda preliminares, teremos menos 6 ou 7 milhões de pessoas que esperávamos ter quando foi feito o Censo de 2010. São pessoas que morreram precocemente? Não, são pessoas que deixaram de nascer.
Os únicos segmentos da população que estão aumentando são os de 60+. Logo, é um país que em torno de 2038 atingirá o ápice da população, com cerca de 232 milhões de habitantes. A partir daí, começará a encolher. Nenhum país rico chegou ao seu nível de desenvolvimento com a população encolhendo.
Com menos crianças nascendo, quais políticas públicas precisam ser priorizadas?
É preciso que a educação pública melhore, pois são esses jovens que entrarão na força de trabalho. Ainda não é hora de pensar em fechar escolas, mas minha intuição diz que, em dado momento, a redução no número de crianças justificará diminuir o número de estabelecimentos de ensino. E, por isso, a qualidade precisará melhorar muito.
Outra discussão na mesma linha é se precisamos investir em maternidades ou instituições de longa permanência para idosos. São políticas públicas que precisam ser debatidas.
Com a população idosa carente em crescimento, será preciso ter mais instituições que deem assistência a essas pessoas. Até para liberar para o mercado de trabalho aquela mulher que fica cuidando dos mais velhos nas famílias.
Uma política pública que funciona bem em outros países é a criação de centros-dia, em que idosos recebem todos os cuidados, enquanto o familiar vai para o trabalho. O Ministério da Saúde tem uma rede grande de agentes comunitários em todo o país que presta serviços para crianças, mas não para idosos.
É preciso capacitar esses agentes para administrar remédios, cuidar da higiene e da alimentação do idoso. Não se trata de colocar os mais velhos em asilos, mas criar políticas públicas e comunitárias para que recebam cuidados, sem exigir que um familiar se retire do mercado de trabalho para isso. Envelhecimento significa uma visão panorâmica. Está tudo interligado, é interseccional.
O setor da saúde está preparado para esse número crescente de idosos?
Segundo dados recentes, temos uma aberração no Brasil. A preferência dos médicos recém-formados é a seguinte: 10% optam pela pediatria e outros 10% escolhem a obstetrícia. Apenas 0,06% optam pela geriatria. Temos um déficit de 28.000 geriatras no Brasil. A Sociedade Brasileira de Geriatria tem, oficialmente, 1.800 médicos.
Obviamente que precisamos de mais geriatras, mas o que necessitamos mesmo como política para um país que envelhece tão rapidamente é que todos os profissionais de saúde, não só médicos, aprendam mais sobre envelhecimento, porque gostem ou não, terão que lidar cada vez mais com idosos. É uma faixa que chegará a 31% da população.
E não é possível gostar daquilo que se desconhece. Isso termina em rejeição ao paciente idoso. Se um estudante de medicina se graduar em 2025 e trabalhar 52 anos, assim como eu, chegará ao ano mágico de 2072 tendo atravessado a vida profissional inteira diante da revolução da longevidade despreparado. No Brasil, existe um idadismo gritante. As pessoas acham que o velho é sempre o outro.
E por que esse idadismo é tão enraizado?
Há exatos cem anos, quando a seguridade social foi criada no Brasil, as pessoas não viviam mais do que dois ou três anos depois de aposentadas. Agora, elas chegam aos 60 e vão viver mais 30. E precisarão de cuidados, pois envelheceram mal, têm que lidar com doenças como Alzheimer ou sequelas de AVC.
O horror de envelhecer sempre foi e sempre será envelhecer sem saber se terá cuidado, um teto em cima da cabeça, comida na prateleira e um mínimo de dinheiro no bolso, nem que seja para comprar medicamentos. E tem muita gente assustada com a perspectiva de envelhecer porque nós não temos as políticas públicas necessárias.
Nesse sentido, quais políticas públicas são mais urgentes?
Uma delas é o dilema da pobreza. São 20 milhões de pessoas em miséria absoluta. É gente que enfrenta a fome e não tem como envelhecer bem. Outra questão é o País não ter uma política de aprendizagem ao longo da vida para que pessoas com 50, 60 anos continuem a ser produtivas. Eu, aos 77 anos, estou em pleno vigor da minha vida profissional.
Na prática, é idadismo proibir essa possibilidade, através de aposentadorias compulsórias e aposentadorias precoces por causa de doenças, e fazer com que o único segmento da população que está crescendo não possa ter políticas para que elas continuem produtivas, pagando imposto, sendo um fator de desenvolvimento e não um fardo lá no topo da pirâmide.
Com o aumento da expectativa de vida, os 70+ não serão os novos 60+, ampliando assim a permanência no mercado de trabalho?
Essa é uma equação que tem que ser discutida com a sociedade. Não quero impor a alguém que nunca teve satisfação no trabalho, que tem um emprego precário e massacrante, não tem acesso a um transporte de qualidade, e dar um tapinha no ombro do companheiro e dizer “tenho novidades: você vai trabalhar mais 7 anos”.
Fizemos uma reforma da previdência mal feita, que privilegiou alguns poucos grupos que nadam em subsídios. Temos um batalhão de pessoas que já foi prejudicado ao longo da sua vida empregatícia, e que agora há quem queira prolongar sua participação no mercado de trabalho. Tem que ter cuidado. Temos que tratar todo mundo com dignidade.
Do ponto de vista pessoal, como chegar melhor lá na frente?
Posso resumir da seguinte forma: para envelhecer bem, comece já. Pense na sua longevidade o mais cedo possível e isso começa aos 20 anos. Não começou aos 20? Inicie aos 30, aos 40, aos 50, aos 60… Crianças e adolescentes têm que crescer sabendo que o futuro é envelhecer. Envelhecer, meu jovem, é bom. Ou você envelhece ou é sinal que já morreu. Qual você prefere? Então, prepare-se. Quanto mais cedo, melhor.
Em termos de desenvolvimento científico, o mundo nunca esteve tão próximo de curas como a do câncer ou do Alzheimer. Não será mais fácil envelhecer no futuro?
Para uma parcela da população, mesmo nos países mais desenvolvidos, isto é fato. Nunca foi tão bom envelhecer se você tem acesso a serviços de saúde e outros serviços. Todos os meus avós morreram antes da minha idade hoje. E morreram velhinhos, com problemas crônicos de saúde e iam arrastando o pé para a varanda para ler jornal. Leio o noticiário no meu iPhone e continuo trabalhando. Então, a tecnologia ajuda não só no ponto de vista de saúde, mas na integração do idoso na sociedade.
Se você tiver acesso à tecnologia de detecção precoce de doenças, acompanhamento, é beleza. Mas tudo custa dinheiro. O grande peso do custo de saúde não é o envelhecimento em si, mas o custo de novas tecnologias, cada vez mais sofisticadas e mais caras.
Veja o caso dos Estados Unidos. Os americanos consomem 18,5% do PIB em gastos de saúde, mas de forma muito desigual. O gasto de saúde per capita é, em média, de 10 mil dólares por ano. Só que tem gente lá que não tem nem 200 dólares por ano investido em sua saúde e outros que tem 100 mil dólares.
E quem sofre mais são negros, latinos, indígenas, imigrantes, não só ilegais, que morrem mais cedo. Eu trabalhei na New York Academy of Medicine, quando saí da Organização Mundial da Saúde, que fica em frente ao Central Park, na região norte do parque, onde começa o Harlem, que é uma região muito pobre.
Se eu olhasse para a esquerda, 2 quilômetros dali em direção ao Upper East Side, aquela zona milionária, dos museus, do Guggenheim, de tudo que é sofisticado, a expectativa de vida na época chegava a 90 anos. Mas se eu olhasse para a direita, dois quilômetros dali, a expectativa de vida era de 69. Essa desigualdade é brutal e acontece aqui também. É como olhar para a favela da Rocinha a partir de São Conrado.
De um lado, tem uma elite que tem o melhor do melhor da tecnologia para lhes garantir uma vida mais longa, mais saudável e com qualidade de vida. Do outro, tem muita gente que está sem o básico.
A cura do câncer, por exemplo, é um desses desafios que centros de pesquisas, empresas, startups no mundo têm almejado. Mas enquanto não se alcança esse objetivo, o que fazer?
Em primeiro lugar, a gente fala de câncer porque o câncer é dramático. Mas as pessoas estão morrendo no Brasil hoje, sobretudo, de doenças cardiovasculares. A hipertensão é o grande vilão e ela leva a doenças como infarto, acidente vascular cerebral. Já temos respostas para essas doenças, não só prevenção primária para impedir que a hipertensão comece, mas uma prevenção secundária para evitar suas sequelas.
Então, a gente tem que começar pelo simples. Num país em que as pessoas simplesmente estão deixando de se vacinar, é falta de letramento científico. É preciso que a vacina contra a gripe, que é uma coisa banal, seja realmente utilizada pelas pessoas que mais se beneficiam, os mais velhos. Mas há uma baixa adesão generalizada. De repente, está tendo um surto de poliomielite, doença erradicada do Brasil.
O que permitiu o aumento na expectativa de vida de 45 anos para 77 hoje não foi a alta tecnologia, mas água potável, vacina e antibióticos. Além disso, a prevenção é fundamental. O Brasil tem sido bem sucedido, por exemplo, na prevenção do câncer de pulmão com políticas para a diminuição do tabagismo.
Como isso aconteceu?
O Brasil era um país onde se fumava muito anos atrás, e por um conjunto de medidas fiscais (aumentando o preço) e legais (proibindo patrocinar shows culturais, esportivos, propaganda) inibiram o consumo e hoje há a consciência da população de que o tabagismo tem efeitos terríveis. Se você fumar na frente de uma criança, provavelmente ela vai te dizer que você não tem direito de fumar perto dela.
A taxa de fumantes hoje no Brasil é menor do que no Canadá, que sempre foi considerado o padrão ouro no assunto tabagismo. Há 40 anos, 18% dos adultos do Canadá eram fumantes, enquanto que esse percentual no Brasil era de 40%. Hoje, o Brasil tem 9%, e o Canadá se mantém no mesmo patamar. Acho que esse exemplo é muito legal porque antes de falar de cura do câncer, de tecnologias miraculosas, vamos falar do básico. É prevenir.
A mesma lógica vale para o câncer de mama, que é o tipo de tumor que mais mata mulheres no Brasil…
Sim, a gente tem que investir em detecção precoce, porque a maioria dos cânceres são mais tratáveis quando o diagnóstico é feito no início.
O câncer de mama tem um fator de risco fundamental que é a idade da mulher ao ter o primeiro filho ou não ter filhos. Ninguém vai impedir as mulheres de adiarem a maternidade ou não terem filhos, porque há outros interesses em termos profissionais ou pessoais. Mas a gente sabe que essas mulheres têm um risco maior de câncer de mama. Logo, tem que investir na detecção precoce, na mamografia, e na realização bem feita do exame por profissionais que sabem o que estão fazendo.
E a prevenção em saúde é também importante do ponto de vista econômico…
Imagine um grupo de 100 pessoas, do qual 70 sofrem com doenças crônicas, hipertensão ou diabetes. Se a gente fizer com que essa população, ao invés de ter diabete aos 38, e hipertensão aos 42, e mesmo que não conseguir prevenir por completo, mas empurrar em mais 10 ou 15 anos esses diagnósticos, aumenta a produtividade dessas pessoas. E aumenta a possibilidade de ter uma força de trabalho e, consequentemente, pagar imposto.