Depois da cadeirada que entrou para a história, é seguro afirmar que os debates à prefeitura de São Paulo têm rompido paradigmas, com níveis inéditos de incivilidade – reflexo da política como entretenimento e de um mundo cada vez mais polarizado.
Mas para Fernando Mitre, o diretor de jornalismo da TV Bandeirantes, o mundo dos debates é um museu de grandes novidades.
Aos 83 anos – 62 de profissão – Mitre é o decano dos debates no Brasil. A Band, uma emissora cuja trajetória se confunde com a democracia, foi o primeiro canal a organizar um debate na primeira eleição presidencial depois da redemocratização.
E não parou mais, sempre com Mitre no comando.
Os bastidores dos debates já lhe renderam um livro com episódios saborosos. Debate na Veia: nos Bastidores da Tevê – A Democracia no Centro do Jogo, que Mitre publicou há um ano, já tem uma segunda edição programada pelas editoras Letra Selvagem e Kotter.
“É muito difícil a preparação de um debate,” Mitre desabafou ao Brazil Journal com um suspiro, depois de terminar uma das muitas ligações que atende diariamente, de assessores e candidatos ansiosos. “Tem sempre um que quer ir, e outro que não quer ir de jeito nenhum. Tem que ter muita paciência para convencer todos.”
Às vezes, a angústia só termina quando tudo já parece perdido, como aconteceu no debate entre Lula e Bolsonaro em 2022. O candidato indeciso (ele preserva o nome por elegância) só confirmou a participação 20 minutos antes do programa entrar no ar.
“Metre,” como lhe chamava Paulo Maluf, exibe suas raízes mineiras num pôster de Carlos Drummond de Andrade pregado na parede do escritório, dentro da redação da TV.
“Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo,” o poeta lhe lembra diariamente em letras grandes. A imensidão dos problemas do planeta – a matéria-prima do jornalismo diário – contrasta com a pequenez humana.
As mãos de Mitre já regeram mais de 30 debates políticos na Band – mas o de 35 anos atrás é o que mais marcou o velho jornalista (e toda uma geração).
“Não há como não se emocionar ainda hoje quando vem à memória a cena histórica daquele julho de 1989: o desfile inédito de todas as ideias e bandeiras ideológicas, o primeiro na televisão e na vida política do país,” Mitre lembra no livro. Era um mundo mais simples, sem cadeiras parafusadas no chão, e um no qual a política tradicional ainda era relativamente bem vista.
Naquele ano, candidataram-se à Presidência nada menos que 22 políticos, entre eles Leonel Brizola, Mário Covas, Ulysses Guimarães, Ronaldo Caiado, Roberto Freire, Paulo Maluf, Enéas Carneiro (uma surpresa do lado conservador), Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor – os dois que foram para o segundo turno.
Era a primeira vez para Mitre e para o Brasil, depois de 21 anos de regime militar.
Brizola e Maluf, os ex-governadores do Rio de Janeiro e São Paulo, patrocinaram uma troca acalorada de acusações pessoais, fora das regras – mas ainda assim educada para os padrões de hoje.
“Filhote da ditadura!” berrava Brizola, apontando para Maluf. “De-se-quilibrado! De-se-quilibrado!” rebatia Maluf, dedo em riste. O pugilato verbal só terminou quando Marília Gabriela chamou os comerciais.
As regras não eram tão rígidas quanto as atuais, e as outras emissoras ainda relutavam em veicular debates políticos, talvez uma memória corporal dos tempos de censura.
“A Band estava sozinha naqueles tempos, a Globo demorou a entrar,” orgulha-se Mitre. Ele lembra que a Band atingiu dois dígitos no Ibope, o que não era comum na época, e faz questão de dar crédito aos Saad, os donos da emissora.
Filho de um comerciante e de uma professora – e o primogênito entre cinco irmãos – Fernando de Lima Mitre começou no jornalismo ainda em sua cidade natal, Oliveira, quando fundou a Tribuna do Estudante aos 16 anos.
Mais tarde, seu caminho profissional em Belo Horizonte se entrelaçaria com personagens como Herbert de Souza, o Betinho, e grupos da esquerda católica.
Ainda principiante, mas já como chefe de redação precoce do Correio de Minas, Mitre pediu licença aos repórteres e escalou-se para cobrir o comício da Central do Brasil em março de 1964. “Depois do discurso de João Goulart pregando as reformas de base, senti claramente que viria o golpe,” relembra.
“Vi a democracia morrer e vi a democracia nascer,” sentencia. Não só como espectador. Como diretor do Jornal da Tarde, publicou com destaque os comícios das Diretas, em 1984, enquanto outros veículos de comunicação ainda temiam desafiar. “Tenho muito orgulho desse trabalho.”
Fernando Gabeira foi seu chefe no Correio de Minas. No primeiro encontro, Gabeira não deu moleza para o iniciante. “Já leu Hemingway?” quis saber. O foca disse que acabara de encomendar. “Já leu Graciliano?” inquiriu. “Ainda não,” admitiu Mitre. “Então quando você se alfabetizar a gente marca um jantar,” esnobou Gabeira, hoje um amigo de longa data.
A passagem de Mitre para a TV foi em 1989. Ainda com uma farta cabeleira escura, participou do primeiro debate como organizador e “perguntador.” Depois, preferiu os bastidores. Achou que a mistura de papéis não deu certo.
Compareceram nove dos 22 candidatos, que atropelaram sem cerimônia os tempos pré-acertados. Perguntavam diretamente uns para os outros e se interrompiam com frequência. Mitre teve que convencer alguns, que mal pontuavam nas pesquisas, a desistirem. Outra tarefa árdua.
De lá pra cá, as regras dos debates se multiplicaram e enrijeceram, às vezes para melhor, às vezes para pior, segundo o diretor da Band. O fato é que a naturalidade e a liberdade para acusar e responder, segundo ele, dificilmente se repetiria nos dias de hoje.
Seu livro, além de passagens, fora dos palcos que poucos presenciaram, ensina lições, aprendidas com a prática de como fazer e avaliar um debate: “Lula chega derrotado” é o título do primeiro capítulo, sobre o famoso confronto Lula x Collor, no primeiro confronto televisado de aspirantes à presidência do país.
Suado e irritado, o petista entrou no estúdio sem sorrir, claramente despreparado, segundo Mitre. O debate foi transmitido ao vivo por um pool das grandes emissoras, regido por Mitre, e assistido por cerca de 100 milhões de pessoas.
“Não vou cumprimentar aquele f. da p.,” afirmou o petista ao diretor da Band, que retorquiu: “Mas Lula, o cumprimento está previsto no roteiro, aprovado pelas assessorias.” Mesmo contrariado, acabou apertando a mão de seu oponente naquela noite.
A impressão de que era o perdedor, diante do perfil esguio e sorridente de Collor, era transmitida pela linguagem corporal, antes da famosa edição que foi ao ar no Jornal Nacional na noite seguinte, notoriamente favorecendo Collor.
Em 2002, Lula se recusava a comparecer para debater José Serra. Mitre teve que ir pessoalmente ao comitê eleitoral para convencer o comando da campanha, então nas mãos do publicitário Duda Mendonça.
— Defenda aí seu debate, provocou Mendonça.
— Não é meu, é para os eleitores, e acredito que será também do Lula, devolveu Mitre.
Mas não houve jeito. Naquele ano não houve debate.
Mitre perde a conta das ocasiões em que teve que persuadir um candidato para que participasse dos debates na Band. Levou-os tantas vezes para a mesa de casa.
Tentou até alcançar as largas passadas do atlético Collor, quando ele saía de uma entrevista no Roda Vida da TV Cultura. Mas Collor não lhe deu atenção e acabou não comparecendo aos debates do primeiro turno de 89.
Como diretor da revista Afinal, de curta duração (1984-1988), Mitre produziu uma capa – nunca publicada – com Fernando Henrique Cardoso, então candidato à prefeitura de São Paulo contra Jânio Quadros.
A imagem que passou para a história foi a da revista Veja SP: FHC sentado (antes da hora) na cadeira estofada que o Jânio desinfetaria publicamente, em uma de suas tiradas teatrais.
FHC havia combinado com a revista que a foto só seria publicada em caso de sua vitória, apontada pelas pesquisas por curta margem de votos.
Naquela mesma eleição, a revista de Mitre tinha feito (também previamente) uma foto ainda mais contundente, com FHC quebrando uma vassoura, o símbolo de Jânio.
Mitre nunca a publicou. Devolveu a foto e os negativos ao derrotado, conforme o combinado.