Numa das cenas mais importantes de Homem com H, a cinebiografia de Ney Matogrosso dirigida por Esmir Filho, o intérprete matogrossense reluta em gravar a canção que dá nome ao filme.
Ney acha que a música ficaria estranha na sua voz porque nunca havia cantado um forró. É convencido do contrário por Gonzaguinha, herdeiro de Luiz Gonzaga. “Você é o único que pode torná-la em algo diferente”, disse o criador de O que é o que é e Explode Coração, entre tantos outros hinos da MPB.
Ney se convenceu, e seu disco de 1981 que trouxe o forró vendeu mais de 300.000 cópias, tornando-se o maior sucesso comercial da sua carreira. De quebra, consolidou no Sudeste o talento de uma dupla que há tempos estourava no Nordeste – Antônio Barros e sua mulher, Cecéu.
Antônio Barros – um pouco reconhecido gigante da música brasileira – morreu no último dia 6 de abril em João Pessoa. Tinha 95 anos e há dois meses estava internado em decorrência de complicações do Mal de Parkinson.
Deixa como testamento mais de 700 canções – boa parte escritas ao lado de Cecéu – gravadas por, entre outros, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Marinês, Dominguinhos, Trio Nordestino, Genival Lacerda, Ney e Elba Ramalho, que lamentou a passagem do compositor.
“A música brasileira perde muito no dia de hoje. Lá se foi o nosso mestre do forró, Antônio Barros. Homem forte, obra consistente e verdadeira ao retratar nossos costumes, nossos ritmos e nosso jeitinho nordestino de ser e de viver.”
Barros era um compositor de melodias simples e de fácil assimilação. As letras, escritas em colaboração com Cecéu, muitas vezes usavam do linguajar coloquial para serem compreendidas por todas as classes. Em algumas, foi o mestre do duplo sentido – caso de Procurando Tu, sucesso do Trio Nordestino e até hoje sua canção mais regravada. Em 2021, sua obra foi reconhecida como patrimônio cultural imaterial da Paraíba.
Antônio Barros Silva nasceu em Queimadas, distrito de Campina Grande, no dia 11 de março de 1930. Criado na zona rural, desde cedo se apaixonou pela música. Chegava a colocar a cabeça numa lata vazia de vinte litros para cantar sucessos como Amélia (de Ataulfo Alves e Mário Lago) e ver como sua voz soava.
Antônio aprendeu a tocar violão e pandeiro na infância. Tinha 19 anos quando foi trabalhar como pandeirista na Rádio Caturité, de Campo Grande, migrando no ano seguinte para Recife.
Foi na capital pernambucana que conheceu Jackson do Pandeiro, a quem apresentou suas primeiras composições. Do Recife foi para o Rio, onde suas criações caíram nas graças de Luiz Gonzaga.
Mas os primeiros contatos não foram exatamente fáceis. Certa feita, Antônio mostrou Resposta de Mata Sete ao sanfoneiro – que se apaixonou por ela na hora. Mas quando soube que a canção tinha sido prometida para Genival Lacerda, “Lua” ficou possesso.
“Não fale mais de música comigo!”, disparou. A raiva, contudo, passou. Em 1967, o sanfoneiro gravou Óia Eu aqui de Novo e se tornou um dos principais arautos do autor. Naquela ocasião, Antônio Barros não só participava da banda de Luiz Gonzaga – era tocador de triângulo – como dormia na casa que o sanfoneiro tinha na Ilha do Governador, no Rio. A Noite é de São João, Forró da Miadeira e Forró Número Um estão entre as muitas canções que Gonzaga fez questão de registrar.
Antônio Barros lançou seu primeiro disco solo, Autor e Intérprete, em 1971, o mesmo ano em que voltou para Campina Grande. Ali, conheceu Mary Araújo Ribeiro, a Cecéu. Inicialmente, tentaram a carreira como intérpretes de música romântica, com o nome de Tony & Mari. Mas foi no cancioneiro regional que atingiram a fama merecida.
Antônio Barros e Cecéu foram gravados praticamente por todos os trios e intérpretes de forró do país. De tempos em tempos, furavam a bolha sudestina. Eu Sou o Estopim (essa apenas de Antônio) gravada originalmente por Marinês, ganhou uma releitura a cargo de Sônia Braga e entrou na trilha de Saramandaia, novela de 1976 da Rede Globo.
Foi uma novela, aliás, que gerou o principal sucesso de Antônio Barros e Cecéu. O compositor assistia a O Bem Amado quando viu Odorico Paraguaçu (personagem de Paulo Gracindo) proferir “nunca vi rabo de cobra, nem couro de lobisomem.”
Nascia ali Homem com H – gravada primeiro pelo grupo Os 3 do Nordeste – sobre um sujeito que reafirmava sua macheza, pero no mucho. “Preste atenção que ele tem de pedir para a mulher dele, a Maria, dizer para os amigos que ele é homem de verdade,” me disse Antônio Barros, numa conversa que tivemos em 2014.
Em 1974, Antônio Barros baixou em São Paulo a fim de que o trio Secos & Molhados se interessasse pela composição. O grupo, no entanto, tinha terminado, e Homem com H caiu no colo do grupo paulistano de rock Hydra – na época, produzido pelo folclórico argentino Mister Sam (o descobridor da rebolativa Gretchen).
“Foi um fracasso, mas o lendário DJ Big Boy adorava a canção,” Sam disse ao Brazil Journal. O Hydra tinha um vocalista, Simbas, que era adepto do estilo andrógrino e tempos depois entraria para o grupo Casa das Máquinas, um dos ícones do rock local.
No mesmo período, Marco Mazzola, um dos maiores produtores musicais do País, recebeu uma fita contendo Homem com H e Por Debaixo dos Panos (também de Antônio Barros e Cecéu). Pediu exclusividade da música e esperou o tempo e o intérprete certos para lançar a composição. No caso, Ney Matogrosso, que no ano seguinte (1982) colocou Por Debaixo dos Panos no repertório do disco daquele ano.
Rompida a barreira, as canções da dupla ganharam gravações de Elba Ramalho (Amor com Café, Bate Coração, Forró do Poeirão e É Proibido Cochilar, que em 2022 foi apontada como a canção mais tocada em festejos populares realizados na capital paraibana).
A obra de Antônio Barros e Cecéu continuou sendo gravada por nomes do forró, e a dupla continuou a se apresentar nos festejos populares. Certa feita, em sua Paraíba natal, chegaram a tocar por 2h40min sem dar sinal de cansaço.
“Deve ser assim no céu. Não tem cansaço. Só energia boa,” proferiu Antônio. Deve-se supor que desde o início de abril o céu está em festa.