Malvine Zalcberg, uma psicanalista belga que sobreviveu ao Holocausto, adotou o Brasil como pátria e ao longo de nove décadas fez contribuições relevantes para a psicanálise e a vida intelectual do País, morreu na semana passada. Ela tinha 91 anos.
Malvine faleceu de causas naturais em 9 de dezembro em São Paulo, a cidade que a acolheu nos últimos anos.
Malvine Zalcberg, née Strozenberg, nasceu na Antuérpia, na Bélgica, em 16 de julho de 1934, e chegou ao Brasil em 1941, no contexto de fuga do avanço nazista na Europa, com o visto concedido pelo lendário embaixador Souza Dantas, que salvou cerca de 500 famílias. Teve que se esconder com a família durante um ano antes de conseguir escapar.
No Brasil, graduou-se em Administração (1961), Música (1963) e Psicologia (1973), sua verdadeira vocação, que a levou para os rumos da psicanálise, onde clinicou por 50 anos e construiu uma vida acadêmica admirável e produtiva.
Casou-se com o arquiteto Schaias Zalcberg, com quem manteve um casamento de 60 anos – profundamente feliz e amoroso, do qual ela se orgulhava – até a partida de seu esposo em março de 2019. O casal teve três filhos, cinco netos e dois bisnetos.
Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atuou no Instituto de Psiquiatria, onde coordenou o Setor de Família e a Especialização em Terapia de Família.
Em associação com o Instituto de Psicologia, Malvine criou o Curso de Especialização em Psicologia Clínica. Em 1997, apresentou o projeto de criação do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, aprovado pela CAPES no final de 1998, um passo fundamental para a implantação e consolidação da psicanálise como campo de pesquisa no Brasil.
Malvine escreveu obras relevantes sobre as questões complexas que envolvem as teorias freudiana e lacaniana do feminino, com exemplos extraídos da clínica analítica, da literatura, do cinema e dos problemas emergentes na cultura contemporânea. Colegas afirmam que ela transmitiu a convicção de que a psicanálise pode e deve ser apreendida nos lugares em que a criação humana se exerce em toda sua plenitude.
Dedicou-se por muitos anos a transmitir a psicanálise entre os analistas, mas também a levá-la ao público amplo, sempre mantendo-se rigorosa com os preceitos teóricos, além de uma clareza e simpatia inigualáveis.
Seu livro A relação mãe-filha constituiu uma fonte de conhecimento para várias gerações de estudantes de psicanálise. Nele, Malvine mostrou que o desdobramento da figura da mãe em duas funções distintas e igualmente fundamentais – a função materna e a função feminina – é uma chave para a compreensão da relação mãe-filha. Ela conclui que é quando a mãe não abdica de nenhuma dessas duas funções que se abre para a filha o caminho de sua própria feminilidade, distinta da de sua mãe.
Em Amor, paixão feminina, Malvine indicou que as mulheres, por cultivarem o amor mais do que os homens, são as grandes protagonistas quando se trata dos encontros possíveis entre os sexos. Para as mulheres, o amor é uma paixão, e é o amor que as identifica como mulheres.
Em De menina a mulher, é sua paixão pelo cinema que lhe serve de móbil para tratar dos problemas candentes do feminino. O livro conecta a psicanálise a obras-primas da sétima arte, num texto divertido e cheio de achados férteis. No relançamento desse livro, no último ano de sua vida, Malvine dedicou-se a escrever um capítulo inteiramente novo.
Querida por várias gerações de analistas que foram seus alunos, sua voz suave e presença elegante davam dignidade aos lugares em que passava, das escolas de psicanálise ao mundo dos livros, jornais, televisão e redes sociais, onde dividiu com seus leitores dezenas de recomendações e comentários de filmes e livros.
Manteve-se ativa escrevendo, clinicando, visitando exposições de arte e estudando até seu último dia de vida.
Além da família, Malvine deixa analisandos, leitores, amigos, e sobretudo um entusiasmo contagiante, pois dedicou-se a demonstrar o quão sofisticada pode ser uma vida psíquica que se deixa envolver pela psicanálise, pela literatura e pelo cinema.











