“Minha mãe nasceu rica, casou-se com um homem rico e, após sua separação, recebeu 86 apartamentos, que ela vendeu um a um para investir em seu trabalho.”

A declaração de Eduardo Clark resume, mas está longe de explicar a vida e a trajetória artística de sua mãe, Lygia, uma das maiores artistas do século XX.

Lygia Clark nasceu em 1920 numa tradicional família mineira, casou-se aos 18, e, pouco depois, se mudou para o Rio de Janeiro com marido e três filhos.

No Rio, resolveu estudar arte com o pintor, designer de joias, paisagista e arquiteto Roberto Burle Marx. Essa experiência marca a primeira grande ruptura da vida de Lygia.

Criar é uma força poderosa que abala as estruturas e acessa nossa sensibilidade e loucura: a vida da dona de casa de classe alta, cuja verve artística estava adormecida, nunca mais foi a mesma.

Difícil imaginar, para aquela época, a magnitude da mudança e onde a levaria.

Fascinada pela vanguarda européia, Lygia foi para Paris, onde viveu com seus filhos entre 1950 e 51, e trabalhou no ateliê de Fernand Léger. Mas nos anos 50, o lugar para se estar era mesmo o Rio de Janeiro: a Bossa Nova estava surgindo, a arquitetura modernista, florescendo, e os artistas nacionais, adaptando o construtivismo para dar mais sensualidade, cor e sentimento.

Lygia volta para o Rio, rompe de vez com sua vida “burguesa”, se separa do marido, manda os filhos para a casa dos avós em Belo Horizonte e mergulha na arte experimental.

Com o Grupo Frente, um coletivo que incluía Lygia Pape e Hélio Oiticica, passa a pregar a liberdade de criação e desafiar a geração de Portinari, Di Cavalcanti e Lasar Segall. Oiticica se tornou seu melhor amigo e parceiro artístico, e os dois entram para o rol dos artistas mais importantes do século XX.

A galeria Pinakotheke Cultural está celebrando o centenário do nascimento desse furacão criativo. Lygia Clark 100 Anos, que começou pelo Rio de Janeiro, agora está em cartaz na filial de São Paulo.

São 100 obras reunidas, a maior parte delas inéditas para o público. A exposição narra a trajetória de Lygia em 17 momentos – de 1947 até 1973 – com texto de Paulo Herkenhoff e gravações da própria Lygia contando curiosidades sobre suas obras.

Na primeira sala, com pinturas ainda bem acadêmicas, a temática eram escadas. É engraçado ouvir Lygia dizer que não se interessava por nada, só escadas.  A experiência em Paris mudou sua forma de pintar, e as obras expostas são preciosidades. Como, por exemplo, as pinturas geométricas que lembram aquarelas de Paul Klee.

A sala com os famosos “Bichos”, esculturas de estrutura móvel de placas de metal articuladas, é espetacular. O artista plástico Nuno Ramos escreveu certa vez que esses trabalhos eram “abertos demais, instáveis demais, inquietos demais – tudo, depois deles, parece possível, e a energia dessa disponibilidade ainda ecoa em todos nós, artistas brasileiros contemporâneos.” Para ele, Lygia é uma espécie de “bruxa fundadora da arte brasileira contemporânea.”

Revolucionária, nunca abriu mão da estética, mesmo quando sua produção troca a contemplação pela manipulação e a participação do espectador. Como aconteceu na sua própria vida, queria que sua arte abrisse novos caminhos. A mostra é de uma elegância sublime, como foi a própria Lygia.

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Também em cartaz em São Paulo até o começo de dezembro, outra amostra de beleza arrebatadora é Nosso Norte é o Sul, na galeria Bergamin Gomide. A partir de peças têxteis produzidas pela cultura Inca, a exposição explora a relação entre arte e as peças têxteis na América Latina desde o período pré-colombiano até os dias de hoje, passando obviamente por Lygia Clark. Lá se encontra a escultura Relógio de Sol, que explora o tato, como os demais trabalhos da série Bichos.

Lygia terminou a vida dizendo que não era mais artista, trocando o ateliê por um consultório de terapia, buscando curar seus pacientes com os objetos artísticos que criava. Lula Wanderley, um psiquiatra pernambucano que foi assistente da Dra. Nise da Silveira, trabalhou com Lygia em suas experimentações.

Fumante compulsiva, Lygia teve um infarto em 1988, no seu apartamento em Copacabana. Morreu aos 67 anos, sem bens e com obras valendo muito pouco no mercado. Na época, os herdeiros sequer abriram inventário para dividir as obras entre si. Mas nos últimos anos, as esculturas e pinturas de Lygia passaram a valer mais de US$ 2 milhões, o que acendeu um contencioso familiar.

Durante a guerra judicial, um juiz ordenou a busca e apreensão de quadros, estudos e cadernos, que foram carregados por oficiais de justiça em caixas de papelão. No contexto brasileiro de (falta de) preservação da cultura e da memória, a ida à Pinakotheke é um deleite quase revolucionário.

 

Rita Drummond escreve sobre arte no Brazil Journal.

 

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Foto: ADAGP Paris/Alécio de Andrade