Jay Powell, o presidente do Federal Reserve, pode querer evitar uma recessão nos EUA – mas se essa for sua decisão, provavelmente a inflação permanecerá por mais tempo acima da meta de 2%.
Essa é a visão de Nathan Sheets, o economista-chefe global do Citi.
“A inflação residual é principalmente a inflação dos serviços,” Sheets disse ao Brazil Journal. “Para eliminar essa inflação mais teimosa, precisaremos ver um aumento no desemprego.”
Sheets, portanto, compartilha da visão segundo a qual a moderação nos salários e nos preços de serviços vai requerer uma retração na atividade econômica.
Na análise do economista do Citi, o mercado de trabalho americano permanece bastante aquecido, o que impede que a inflação volte para a meta.
Para Sheets, a economia dos EUA se mostrou em 2023 mais resistente do que o previsto. No entanto, uma recessão deverá finalmente ocorrer em meados de 2024 – a menos que, como enfatizou o economista, o Fed decida jogar ainda mais para frente a convergência da inflação para a meta.
Sheets foi subsecretário para assuntos internacionais do Tesouro americano entre 2014 e 2017, durante o governo Barack Obama. Naquele período, participou de negociações com autoridades do governo de Mauricio Macri na Argentina.
Na entrevista a seguir, o economista analisa as perspectivas para EUA e Europa, fala da surpresa positiva com o Brasil (“O BC conseguiu administrar o ciclo melhor do que imaginávamos”) e comenta o cenário para a Argentina de Javier Milei (“Tem que equilibrar as contas, e isso será doloroso”).
Vocês esperavam uma recessão nos EUA em 2023, mas a retração não veio. Agora novamente estão prevendo uma recessão em 2024. Onde vocês erraram em 2023 e por que esperam acertar em 2024?
Gostaria de iniciar a resposta enfatizando que, se Jay Powell e o Federal Reserve se empenharam em evitar a recessão, eles poderão fazê-lo. Mas seria ao custo de manter a inflação acima de 2% por mais tempo do que imaginaríamos que o Fed seria capaz de tolerar.
Dito isso, existem razões para a nossa previsão de que haverá uma recessão.
Sempre que tivemos inflação elevada e crescimento rápido dos salários, como agora, parte do processo de restabelecimento do equilíbrio envolveu um crescimento mais fraco e um mercado de trabalho menos apertado.
A inflação residual é principalmente a inflação dos serviços – e essa inflação dos serviços está ligada ao mercado de trabalho e ao crescimento dos salários de forma mais direta do que a inflação das mercadorias.
Para eliminar essa inflação mais teimosa, precisaremos ver um aumento no desemprego.
Em 2023, o consumidor americano provou ser extremamente resiliente – mais do que esperávamos. Isso se deveu, entre outras coisas, à demanda reprimida por lazer e viagens.
Tem havido uma demanda muito forte, insensível aos preços. Em 2024 o consumidor deverá segurar esses gastos.
A resistência da economia à alta dos juros surpreendeu. Mas ao longo do próximo ano sentiremos cada vez mais os efeitos desfasados da política monetária restritiva.
O Fed desafiou os ‘hawks’ e foi bem-sucedido até agora em seu equilíbrio entre inflação e emprego. Mas, em sua visão, essa ‘última milha’ do combate à inflação exigirá uma retração da economia. É isso?
Correto. Essa última milha será mais desafiadora.
Para conter os salários, é necessário vermos um mercado de trabalho menos apertado.
A última milha não é mais sobre a alta causada pela pandemia ou pela guerra. É a parte que diz respeito ao mercado de trabalho.
Nossa sensação é que a última milha provavelmente será mais dolorosa.
As expectativas de inflação estão mais ancoradas, mais próximas da meta. É um sinal de que o Fed poderá manter a sua estratégia de convergência gradual?
Sim. Isso sugere que o Fed continua a ser visto como confiável e que pode ter mais tempo para levar a inflação de volta à meta de 2%.
Powell, na última coletiva de imprensa de 2023, foi mais dovish do que eu esperava. Ainda assim, as taxas de juros futuros caíram, um indicador de que as pessoas estão confiando no Fed.
Falando nisso, parte do mercado já espera que o Fed comece a cortar os juros em março. O ‘call’ de vocês no Citi é julho. Por quê?
Março parece muito cedo.
Veremos provavelmente nos próximos meses algumas melhorias adicionais na inflação, mas os cortes precificados nos parecem muito agressivos.
No próximo ano haverá eleições nos EUA. Espera mais um ano de aumento nos gastos públicos?
Não creio que haverá uma expansão significativa. Os republicanos controlam a Câmara. Neste momento eles estão batendo na mesa e exigindo cortes nos gastos.
A barra para aumentar despesas ficou muito elevada. Não espero que novas iniciativas fiscais influenciem a economia em 2024. É improvável.
Em um relatório recente, vocês comentam que o desempenho econômico dos principais países e regiões foi ‘surpreendentemente dessincronizado’ no último ano. Isso é algo transitório, devido à pandemia, ou podem ter ocorrido mudanças estruturais de longo prazo?
Não sei responder ao certo. O que posso dizer é que estou convencido de que existem alguns fatores cíclicos.
Havia uma forte demanda por mercadorias e recentemente houve um aumento no consumo de serviços, como disse anteriormente.
Isso pode ter atingido dois grandes produtores industriais, a Alemanha e a China. Enquanto isso, os EUA, país que é grande produtor de serviços, vão relativamente bem.
Um ponto-chave, portanto, é essa diferenciação no ciclo de mercadorias e serviços – e a exposição dos diferentes países a isso.
Outro ponto é a exposição às questões geopolíticas. Os EUA foram muito pouco afetados pelo choque energético associado à invasão da Ucrânia pela Rússia. Os EUA são autossuficientes em energia.
Outro fator foram os efeitos da covid. A área do euro estava entrando na recuperação da reabertura quando explodiu a guerra na Ucrânia.
Mas talvez haja sim questões estruturais – como, por exemplo, países buscando ser autossuficientes, focados na produção interna e menos vulneráveis aos choques globais. Isso ainda é uma hipótese.
Vocês esperam que o Banco Central Europeu comece a cortar juros mais cedo do que o Fed. Mas no momento o BCE tem soado mais ‘hawkish’ do que o Fed. Não é um pouco contraditório esperar que os europeus cortem antes?
Imagino que o BCE não esperava um pivot tão agressivo por parte do Fed. Christine Lagarde foi pega de surpresa.
O fato é que a atividade da economia europeia está fraca. Registrou uma ligeira contração no terceiro trimestre do ano passado e o resultado deve ter sido parecido no último trimestre.
Isso tira pressão da inflação e abre a porta para o BCE reduzir a sua taxa básica de juros em junho. É o nosso cenário base. Talvez comece a cortar um pouco antes.
Já o Fed deverá cortar a partir de julho. Portanto, não me surpreenderia se o BCE der início ao ciclo de redução alguns meses antes do Fed. A economia europeia está em uma situação de maior fragilidade.
Qual a sua avaliação da economia brasileira no último ano? Espera uma freada mais intensa em 2024?
O Brasil é uma história notável, semelhante à dos EUA. No início do ano, esperávamos uma recessão e ela não veio. Adiamos a previsão, e, novamente, ela não veio. Finalmente desistimos.
A demanda interna foi mais forte do que esperávamos e não estamos vendo uma recessão no próximo ano. Esperamos o crescimento desacelerando para perto de nossa estimativa de PIB potencial, que é de cerca de 1,5%. Mas quem sabe teremos novamente uma surpresa positiva.
Aqui vale um comentário sobre o papel do Banco Central. Em 2021, quando Jay Powell andava por aí falando sobre inflação transitória, o BC do Brasil estava falando grosso e aumentando os juros. Outros países emergentes fizeram o mesmo.
Liderar o início do ciclo de aperto deu-lhes credibilidade no controle da inflação. Por isso puderam cortar antes do Fed.
No Brasil, o BC conseguiu administrar o ciclo com mais sucesso do que esperávamos.
Como subsecretário do Tesouro, você manteve negociações com a equipe do presidente Mauricio Macri. Aquele governo acabou frustrando o otimismo inicial dos investidores. O que deu errado? Como a Argentina pode superar a crise de confiança?
Lembro-me de visitar Buenos Aires em março de 2016, após a eleição de Macri, e o sentimento era de fato muito positivo. Particularmente, eu tinha a opinião, como muitas outras pessoas do mercado, de que aquele governo poderia representar um ponto de virada.
Um dos marcos dessa confiança foi que eles conseguiram emitir um título de 100 anos, o Century Bond. Isso dá a medida da credibilidade e do otimismo naquele período.
Mas me recordo de que, naquela viagem, conversei com um analista local bastante experiente e ele me disse: “Isso parte meu coração, mas eles simplesmente não estão fazendo o suficiente na área fiscal.”
Os argentinos precisam equilibrar as contas públicas, e isso é um processo muito doloroso. Mas parece que eles perceberam que, se não fizerem esse ajuste doloroso, continuarão com outro tipo de dor.
O ajuste precisa ser feito logo, enquanto o presidente eleito conta com o apoio popular.
Acompanho a Argentina há 20 anos e, na verdade, essa sempre foi a grande questão. Talvez tenha chegado o momento de tomar as medidas necessárias.
Vamos torcer.