GENERAL PACHECO, Argentina — As picapes da Ford são propagandeadas há 44 anos com um (bom) slogan americano, meio intraduzível para o português: Built Ford Tough — algo como “Construído Fordemente Robusto”, que deve ter dado muito trabalho aos publicitários brasileiros da marca até virar o mais aguado “Raça Forte”.
Marketing à parte, o fato é que esse brand equity de robustez das suas picapes, construído ao longo de décadas, é uma das âncoras da estratégia de “premiumização” implementada pela Ford globalmente e que, no Brasil, teve sérias consequências de relações públicas após o fechamento súbito e meio atrapalhado da fábrica de Camaçari, que produzia os modelos de entrada da marca no país, o hatch Ka e o SUV compacto EcoSport.
Hoje como importadora, a Ford Brasil comercializa apenas SUVs médios, picapes e o Mustang, e o ticket de entrada na marca parte dos R$ 228.590 da Ranger XLS 2.2. Sendo generoso, pode-se afirmar que a comunicação da nova estratégia para o grande público foi… convoluta – ou você nunca ouviu um amigo dizer que “a Ford saiu do Brasil”?
Como parte de um constante esforço para desfazer a confusão, a marca convidou um grupo de jornalistas para um tour detalhado da planta de General Pacheco, na Argentina, completamente reformulada com investimentos de US$ 660 milhões que expandiram sua capacidade em 70%. A planta também passou a abrigar a linha de montagem da Nova Ranger, uma picape crucial para a estratégia da montadora no continente.
Localizada a pouco mais de meia hora do centro de Buenos Aires, Pacheco é uma espécie de São Bernardo do Campo hermana, onde as fábricas de Ford e Volkswagen são literalmente separadas por um muro, ao estilo dos CTs de Palmeiras e São Paulo na Barra Funda. Ironicamente, há uma colaboração global corrente entre Ford e Volks no segmento de picapes médias, com as novas gerações de Ranger e Amarok compartilhando a mesma plataforma.
Indagado sobre a possibilidade aparentemente lógica das duas picapes dividirem a mesma linha de montagem por aqui, Martin Galdeano, presidente da Ford Argentina, não conteve em sua negativa um sorriso semi-irônico, que credito às feridas ainda abertas da finada AutoLatina, catastrófica joint-venture entre as duas marcas na América do Sul nos anos 80 e 90.
A injeção de dinheiro na fábrica de Pacheco, que exporta a Ranger para o Brasil desde 1996, dá à fábrica uma capacidade anual total de 110 mil unidades – um número agressivo, considerando que apenas 50 mil Rangers foram produzidas em 2022 para atender o mercado sul-americano (destas, cerca de 40% foram comercializadas para brasileiros).
Rogelio Golfarb, vice-presidente da Ford América do Sul, é nosso guia para o tour que se estende por um total de quatro horas. O alto valor do investimento se justifica também pela espetacular complexidade da cadeia automotiva: a linha da Nova Ranger precisa nascer sem impactar a produção do modelo antigo em paralelo. Após o período de convivência das duas gerações, a linha antiga será desmontada e os equipamentos, reciclados.
“Fala-se muito em ‘Indústria 4.0’ no nosso meio, mas na prática isso sempre foi conto de fadas, na maioria dos casos,” alfineta Golfarb, referindo-se à dita “Quarta Revolução Industrial”, que em termos de indústria automotiva traduz-se principalmente em (ainda mais) automação e comunicação integrada total entre os equipamentos através da internet of things. “A nova Pacheco é o início da realidade 4.0 para a Ford na América do Sul”.
O pièce de résistance da renovada planta é a imensa prensa da marca alemã Schuler, com carga máxima de 2.500 toneladas – mais do que o dobro da anterior. Em meus 20 e poucos anos de jornalismo automotivo, já visitei mais fábricas do que provavelmente gostaria, e preciso confessar: fiquei realmente impressionado. A prensa estampa as 26 partes de aço que compõem a Nova Ranger – portas, capô, assoalho, caçamba, enfim, tudo que é de “lata” em um carro – com velocidade impressionante, quase violenta. São 900 golpes de estamparia por hora, em uma brutalidade que só é possível, claro, graças a uma precisão de nível aeroespacial.
“A obra de construção civil para instalar a prensa deve ter custado mais do que ela mesma”, brinca o argentino Gastón Wainer, gerente do complexo de Pacheco. A máquina de 9 metros de altura exigiu a escavação de uma fundação igualmente profunda, e uma readequação do telhado da fábrica para expandir o pé-direito em mais 6 m, para 18 m no total.
Retiro o óculos de proteção: é hora de nos deslocarmos para a planta de Montagem, quase um yin para o yang do som e fúria das plantas de Estamparia e de Solda, onde 318 robôs inteligentes se comunicam para soldar e unir, por exemplo, o assoalho mais as três laterais que formarão uma caçamba. Na Montagem, o ritmo despenca: tudo é lento, calculado e relativamente silencioso, e o olhar e o trabalho manual humano ainda são necessários em áreas como o torqueamento da cabine ao chassi.
Aqui, a afirmação de Golfarb sobre a Indústria 4.0 se concretiza: um sistema de escaneamento 3D com 81 sensores espalhados ao longo da linha realiza em tempo real a configuração e o teste dos até 50 módulos eletrônicos embarcados nas versões de topo da Nova Ranger. A programação de parâmetros como o sistema de detecção de pressão de pneus – que exige códigos diferentes para as distintas dimensões de pneus de cada versão da picape – acontece sem intervenção humana alguma.
Apesar de todas as novas tecnologias e capacidade instaladas, Pacheco seguirá fabricando apenas a Ranger — nada de produção no Mercosul para Bronco, Maverick ou F-150, uma possibilidade que ajudaria a linha agora 100% premium da Ford a aterrissar no Brasil por preços mais competitivos. Nem mesmo a fora-de-estrada Raptor, versão de topo da Ranger clamada há anos pelos fãs brasileiros da marca, está cogitada para produção em General Pacheco.
“Nunca se diz nunca na indústria automotiva, mas Pacheco seguirá focada em abastecer as versões de volume da Ranger para toda a América do Sul,” insiste Golfarb.
A Raptor, se confirmada para o Brasil — a renovada rival Toyota Hilux Gazoo Racing, fabricada pertinho de Pacheco, em Zárate, acaba de ser lançada no Brasil com preço de R$ 367.390 — chegaria aqui em 2024, importada dos EUA.
Cassio Cortes viajou a General Pacheco a convite da Ford Brasil.