Você piscou e parece que a palavra “endometriose” foi incorporada ao vocabulário das mulheres à sua volta?

Amigas, esposa, namorada, colegas de trabalho ou irmãs têm comentado sobre as cólicas menstruais insuportáveis que as deixam insones, cansadas, irritadas, sem concentração e zero dispostas para a vida social? Não é à toa que tem se falado — e tratado — tanto do assunto. O número de diagnósticos da doença tem mesmo aumentado — em parte pelos avanços da medicina, com exames de imagem mais precisos, em parte pelo estilo de vida moderno que faz crescer o número de casos.

O adiamento da maternidade ou a decisão de não ter filhos, em nome de outros desejos de vida, tem seu papel, pois aumenta o número de ciclos menstruais ao longo da vida. O maior consumo de álcool, as altas cargas de estresse no trabalho, a alimentação recheada de produtos ultraprocessados que bagunçam os hormônios e a falta de tempo para manter o corpo em movimento — tudo isso tem se somado aos fatores genéticos que influenciam o surgimento da doença.

A endometriose, que se caracteriza por um quadro inflamatório crônico, ocorre quando há migração de células que formam a parede do útero (o endométrio) para outros órgãos, como ovários, intestino e bexiga, onde se fixam, causando fortes dores.

O ginecologista e obstetra Rubens Gonçalves Filho, cirurgião do Centro de Excelência em Cirurgia Robótica do Hospital Israelita Albert Einstein, que há 30 anos se dedica ao tratamento da endometriose, explica que, por fatores culturais, o diagnóstico muitas vezes acontece de forma tardia. “Sempre se ouviu que é normal ter dor para menstruar. Quando a mulher chega ao médico com essa queixa, a maioria já está no nível 8, 9 ou 10 na escala de dor — e aí já tem doença.”

Nesta conversa com o Brazil Journal, Rubens apresenta os principais avanços no tratamento da endometriose, com medicações específicas e cirurgias assistidas por robôs. 

A endometriose se tornou um assunto mais frequente nos últimos anos. Houve aumento na capacidade diagnóstica ou cresceu o número de casos?

Este ano marca exatamente 25 anos do início das pesquisas para o diagnóstico da endometriose por exames de imagem — ultrassom transvaginal com preparo intestinal e ressonância magnética. Antes, dependíamos de uma cirurgia, a videolaparoscopia, para identificar a doença em mulheres que há anos apresentavam dores intratáveis com medicamentos.

Os avanços nos exames facilitaram os diagnósticos, mas também houve aumento no número de casos, em função das gestações mais tardias e das mudanças de hábitos, como maior consumo de álcool, substância altamente inflamatória, e alimentação com base em produtos ultraprocessados, que contêm disruptores endócrinos, ou seja, provocam desbalanço no sistema hormonal da mulher.

Por que, com todos os avanços, o diagnóstico ainda é difícil?

Em primeiro lugar, sempre se ouviu que é normal ter dor para menstruar. Às vezes, você tem histórias de família em que a avó tinha dor incapacitante para menstruar, a mãe tirou o útero, depois de ter filhos, porque tinha muita dor para menstruar… Culturalmente, a mulher é ensinada a aguentar a dor.

Então, quando ela chega ao médico com essa queixa, a maioria já está no nível 8, 9 ou 10 na escala de dor — e aí já tem doença. Muitas vezes, ela tem um diagnóstico tardio e já não responde a medicamentos. Boa parte das mulheres que fazem cirurgia de endometriose têm uma história de 10, 15, 20 anos de dor. Além disso, estamos falando de uma medicina de alto nível e de exames de alta complexidade, com poucos radiologistas especializados, então, infelizmente, a grande maioria das mulheres brasileiras não têm acesso a diagnóstico e tratamento.

A endometriose também afeta os homens?

Afeta os homens que convivem com suas companheiras com endometriose, porque elas podem desenvolver depressão, irritabilidade, insônia… Algumas passam a evitar relações sexuais porque sentem dor e ficam sem disposição para ir a compromissos sociais… É um desafio para os casais, hetero e homossexuais.

Nos casais homossexuais, as mulheres costumam ter bastante apoio de suas companheiras. Os homens, por desconhecimento ou preconceito, podem interpretar a queixa da mulher como frescura, exagero ou vontade de chamar atenção. Mas também observo, quando eles acompanham suas parceiras na consulta, que muitas vezes colocam mais ênfase na questão da dor do que a própria paciente, deixando claro que já passou dos limites. Essa é uma forma de apoio importante — estar atento quando a mulher tende a normalizar o sofrimento, dizendo que “sempre foi assim na família dela” ou algo do tipo, e insistir na busca de um especialista.

Quais são as maiores dúvidas e angústias dos casais que te consultam?

Os casais que desejam ter filhos querem saber sobre infertilidade, o que é uma questão real, pois 50% das pacientes com endometriose não conseguem engravidar. A segunda maior preocupação é se a endometriose pode virar câncer. São casos raros, que acontecem principalmente quando a mulher adentra a menopausa com endometriose ovariana, que se apresenta na forma de cistos, especialmente cistos com mais de 6 centímetros.

Faz diferença dar atenção aos aspectos emocionais e psíquicos relacionados à doença?

Tem um dado interessante da Sociedade Americana de Pediatria que é: se o médico deixa a paciente falar por cinco minutos, sem interrompê-la, aumenta em até 80% sua capacidade diagnóstica. Só de ouvir a paciente. Esse dado vem da avaliação de pediatras que se dedicam a escutar as impressões das mães das crianças, mas serve para qualquer especialidade. No currículo da faculdade de medicina, existe a disciplina de psiquiatria e psicologia médica. Escutar faz parte do nosso trabalho. O fato de ser filho de um ginecologista e de uma psicanalista, além de ter feito análise pessoal por quase dez anos, também me ensinaram a importância de ter ouvidos. Escutar aumenta a sensibilidade do médico para o sofrimento alheio e traz conforto para a paciente.

 Existe um perfil típico de mulheres com endometriose?

Mulheres que têm mãe ou irmãs com endometriose são as mais afetadas. O risco de desenvolver a doença, que é de aproximadamente 10% para as mulheres em geral, quase dobra nesses casos.

 Além disso, é mais comum em mulheres que têm maior número de ciclos menstruais ao longo da vida — porque começaram a menstruar precocemente, por volta dos 9 ou 10 anos; têm ciclos menstruais mais curtos, com intervalo inferior ou igual a 21 dias; engravidaram depois dos 35 anos; ou não tiveram filhos.

 Ser portadora de uma doença autoimune, como a fibromialgia, também aumenta o risco, porque exacerba processos inflamatórios no corpo da mulher.

 E há ainda a influência de fatores externos. Temos a hipótese de que viver num ambiente social desfavorável, por exemplo, acarreta um estresse crônico, desde o início da vida, que interfere no metabolismo hormonal. Sedentarismo e sobrepeso também contribuem para o surgimento do quadro. A endometriose é uma doença multifatorial.

 Quais os tratamentos disponíveis hoje?

Já existem medicamentos específicos que não só aliviam a dor, mas reduzem o volume e o número de focos de endometriose, freando o desenvolvimento da doença — são os anticoncepcionais da classe das progesteronas. Cerca de 50% das mulheres respondem bem ao tratamento clínico com progesteronas, analgésicos e mudanças de estilo de vida. Ou seja, ter endometriose não significa ter que fazer cirurgia, necessariamente. É muito importante a vigilância radiológica, ou seja, refazer os exames a cada seis meses para controle do quadro.

 Mulheres que não podem usar hormônios por predisposição a trombose ou porque tiveram câncer de mama, por exemplo, podem ser tratadas com analgésicos, antiinflamatórios, acupuntura, técnicas de relaxamento e meditação, que reduzem o estresse e têm poder sedativo. Existem medicamentos não-hormonais que estão sendo propostos, os antiestrogênicos, mas eles levam a sintomas de menopausa, inclusive com possibilidade de osteoporose.

 Atividade física aeróbica é obrigatória para as mulheres com endometriose — caminhada, corrida, dança, natação e bicicleta, por exemplo, ajudam a regular a produção natural de estrogênio, hormônio que alimenta a doença. Dietas antiinflamatórias também podem ter efeito positivo porque ajudam a combater a inflamação crônica que ocorre no quadro de endometriose, podendo provocar outros sintomas além da dor, como fadiga, insônia e dificuldade de concentração.

 Quando a cirurgia é indicada?

Em geral, nos casos que não respondem às medicações e especialmente nos quadros graves, em que a endometriose atinge camadas profundas do intestino, apêndice, bexiga, rins ou até o diafragma (músculo da respiração), comprometendo a função desses órgãos. Costumo dizer que a cirurgia não é a primeira indicação, mas pode ser a única indicação para algumas mulheres. E há ainda situações específicas, como quando a mulher quer engravidar e não está conseguindo ter relações sexuais porque sente dor — neste caso, não podemos usar anticoncepticonais para tratamento, então, a cirurgia é uma opção.

 Quais foram os avanços mais recentes no tratamento cirúrgico?

A endometriose provoca uma distorção da anatomia dos órgãos pélvicos e abdominais. Em palavras leigas, ela age como uma cola que gruda órgãos que antes deslizavam entre si, e isso provoca dor. Quanto mais perto os olhos do cirurgião estão dessas lesões, maior precisão ele tem para removê-las.

 A videolaparoscopia, que é uma cirurgia minimamente invasiva, começou no Brasil no início da década de 80, fazendo essa aproximação do olho do cirurgião em relação às lesões. Foi um grande avanço. E os robôs cirúrgicos, lançados no mercado americano em 1998, chegaram ao Brasil dez anos depois, trazendo acurácia ainda maior.

 Esses robôs permitem ao cirurgião enxergar em 3D, com noção de profundidade, e têm câmeras muito potentes, ricas em detalhes. Além disso, possuem pinças mais delicadas, que se articulam como o punho humano e filtram tremores da mão do cirurgião, minimizando ainda mais as chances de lesões aos órgãos, durante o procedimento. O robô é 100% comandado pelo cirurgião, não toma nenhuma decisão sozinho.

 A cirurgia robótica da endometriose proporciona operações mais rápidas, remoção de mais lesões, melhor recuperação da paciente e menor chance de recidiva da doença.