A australiana Annabelle Gibson (ou Belle, como ela prefere ser chamada) conquistou a notoriedade tão sonhada e raramente alcançada por todos que se apresentam nas redes sociais como influencers.

Belle atraiu mais de dois milhões de seguidores no Instagram, criou um aplicativo de culinária saudável chancelado pela Apple, e lançou um livro de receitas pela Penguin.

Sua fama como wellness guru foi construída sobre sua comovente história de mãe solo empreendedora que, diagnosticada com um câncer terminal no cérebro, venceu a doença graças à dieta saudável e à inquebrantável vontade de viver.

Tudo veio abaixo quando Beau Donelly e Nick Toscano, repórteres do jornal The Age, de Melbourne, revelaram que Belle, na verdade, nunca teve câncer.  

A carreira vertiginosa de Belle Gibson ficou circunscrita à Austrália e foi muito breve: durou de 2012, quando ela se lançou no Instagram, a 2015, quando The Age publicou seu exposé.

Agora, ela finalmente ganhou fama mundial, mas não do modo que desejava. Vinagre de Maçã (Apple Cider Vinegar), uma série em seis episódios na Netflix, reconstitui a escandalosa fraude com muita liberdade criativa e um roteiro inteligente.

Baseada no livro The Woman Who Fooled the World, escrito por Donelly e Toscano (na série, eles ganham nomes e histórias diferentes), Vinagre de Maçã se ergue acima da enxurrada de produções da Netflix. Em ousadia, talvez fique atrás somente da pungente Adolescência.

Sem fazer discurso, a série australiana confronta toda uma cultura recente que converteu a “vida natural” em fetiche – e defende a medicina convencional e seus recursos farmacológicos como o único caminho para tratar problemas graves de saúde.

Belle é vivida por Kaitlyn Dever, uma americana no meio de um elenco dominado por australianos (aliás, ela domina muito bem o sotaque). Sua composição de personagem é espantosa. Kaitlyn faz de Belle uma figura capaz de inspirar ao mesmo tempo pena e aversão – dualidade que chega ao clímax na cena em que ela aparece em uma cerimônia fúnebre na qual ninguém queria vê-la.  

No início do primeiro episódio, Belle olha a câmera de frente para dar um recado ao espectador: “Esta é uma história verdadeira baseada em uma mentira. Alguns nomes foram alterados para proteger os inocentes. Belle Gibson não foi paga pela recriação de sua história”. 

Nos cinco capítulos restantes, o texto é repetido, com algumas variações, por outros personagens. A quebra da quarta parede na leitura desse curioso disclaimer vale por uma declaração de honestidade narrativa. Trata-se de uma forma engenhosa de admitir que adaptações foram feitas, mas só para realçar a essência da história.

Distanciando-se do realismo típico das séries baseadas em fatos reais, Vinagre de Maçã tem certa levada pop. A ânsia de Belle por aprovação nas redes sociais, por exemplo, é representada com recursos gráficos – um redemoinho de comentários e emojis flutuando em torno da personagem quando ela abre o Instagram no celular.   

A narrativa não é linear: de forma dinâmica, vai alternando cenas de diferentes momentos da vida da Belle. A trajetória dela em busca de popularidade nas redes desenvolve-se em oposição a outra divulgadora de terapias naturebas, Milla Blake (Alycia Debnam-Carey) – personagem inspirado em Jess Ainscough, jornalista e defensora de terapias holísticas que acabou morrendo de câncer.

Ao contrário de Belle, Milla realmente tem câncer – uma variedade agressiva de sarcoma. Recusando a intervenção cirúrgica drástica que poderia salvá-la, ela busca a cura em uma clínica muito luxuosa (e muito suspeita) no México, onde é tratada com comidinhas orgânicas e enemas de café.

O contraste entre essas duas jovens costura boa parte da narrativa. Milla representa o poder do autoengano: precisa desesperadamente acreditar que está se curando só com mudanças no estilo de vida. Belle é uma golpista, mas, como muitos mitômanos, parece convicta das mentiras que conta – a ponto de se enredar nelas.

O dado mais escandaloso da história, exposto de forma aguda ao longo da série, é o modo irresponsável como gigantes corporativos abraçaram a história fajuta de Belle. A Apple promoveu o app desenvolvido por ela, The Whole Pantry, e o distinguiu como melhor aplicativo de Comida e Bebida de 2013. No ano seguinte, a Penguin lançou na Austrália seu livro de receitas.

Em Vinagre de Maçã, a queda de Belle Gibson é anunciada já nas primeiras cenas, e vai se desenvolvendo até o final. Na vida real, o fim permanece em aberto.

Em 2017, a Corte Federal da Austrália condenou Belle a pagar uma multa de 410 mil dólares australianos (em torno de US$ 270 mil) por enganar o público com a história do câncer e por fraude no recolhimento de doações para caridade.

Belle não pagou até hoje.