Na última cena de Um Circo de Rins e Fígados (2005/2006), escrito e dirigido por Gerald Thomas, Marco Nanini deixava o palco com uma reverência a sua profissão: “Quando dizem que o ator não se emociona, estão errados. A gente se emociona sim.”
Quase duas décadas depois, a dupla se reencontrou em um novo trabalho. Traidor estreou em novembro, passou por São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba e Rio de Janeiro, e agora volta à capital paulista no Teatro Sérgio Cardoso, antes de retomar uma excursão com datas fechadas até dezembro.
A frase que norteia Traidor, citada várias vezes ao longo da peça, é justamente aquela que encerrava Um Circo de Rins e Fígados: “A gente se emociona, a gente se emociona sim.”
Nanini interpreta um ator – batizado com seu próprio sobrenome, “Nanini” – isolado em uma ilha deserta, perdido entre a vida real e delírios da imaginação. Sua memória falha, os pensamentos são desconexos. Ele insiste, porém, em entender o que acontece ao seu redor.
O personagem tem a mente povoada por seres estranhos, representados por um coro formado pelos atores Cadu Libonati, Hugo Lobo, Ricardo Oliveira e Wallace Lau e pela voz em off da atriz Fabiana Gugli, a diretora fictícia de Nanini e alter ego de Thomas.
Nanini, o ator, é categórico ao reconhecer que, claro, os seus colegas, mesmo apoiados pela técnica, são guiados pela emoção. “Não penso em controlar o sentimento que nos toma em cena, porque dar vida a um personagem exige concentração, comprometimento e desprendimento de nossas vaidades,” o artista disse ao Brazil Journal. “É como se você selasse um pacto.”
Esse arrebatamento, para o artista, vem em um pacote que não distingue entre os seus próprios sentimentos e os daqueles que o cercam. “Estar no palco me emociona, assim como assistir a um colega em sua entrega, contracenar me emociona sempre, observar os técnicos concentrados e a paixão dos profissionais que cuidam dos teatros pelo Brasil também,” disse o ator.
Para encarar a dramaturgia fragmentada de Thomas, porém, Nanini confessa a necessidade de recorrer a alguns artifícios.
Em Traidor, encontrar o personagem foi algo complexo, porque, como a história trata de muitos assuntos, até bater a autoconfiança se fizeram necessários exaustivos ensaios. “O frio na barriga e a insegurança estarão sempre presentes comigo porque cada processo é um universo desconhecido e nunca sabemos se vai ser fácil ou não.”
Nas conversas com Thomas, o protagonista buscou referências para criar este náufrago no velho Próspero, protagonista da peça A Tempestade, de William Shakespeare, e em Joseph K, o personagem afogado no absurdo do romance O Processo, de Franz Kafka. Em suas divagações solitárias, recorreu à imagem do maestro inglês Leopold Stokowski (1882-1977), com seu cabelo arrepiado, parecido ao de um pardal.
Mesmo que reforce na dramaturgia ícones do caos contemporâneo, como a ansiedade gerada pelo excesso de informações e o uso viciante das redes sociais, Thomas fez de Traidor uma declaração de amor ao ofício da representação.
Hoje com 76 anos, Nanini celebra seis décadas de uma das carreiras mais profícuas dos palcos brasileiros, com passagens significativas pelo teatro, televisão e cinema.
“Eu nunca quis ser só um ator de clássicos e chanchadas, mas queria fazer clássicos e chanchadas e desejava o drama contemporâneo, o experimental e o popular, peças com grandes elencos e monólogos,” afirma.
Segundo o intérprete, essa variedade no repertório foi calculada, principalmente a partir da década de 1990, depois do extraordinário sucesso de O Mistério de Irma Vap (1986-1997).
“Trabalhei com os diretores mais variados possíveis, em uma linguagem às vezes mais próxima e em outras bem distante da televisão e é esse o exercício que me oxigena,” disse. “Tenho orgulho de ter construído uma carreira com muito trabalho, sem passar ninguém para trás e escolhendo o que queria fazer.”
Esse oxigênio bem-vindo tem relação direta com a mudança de seu contrato com a televisão na época. Logo depois da novela Pedra sobre Pedra (1992), o artista, por opção, deixou de ter vínculo fixo com a Rede Globo – o que não significou ausência do vídeo.
“Foi um período de um processo definidor para a minha carreira, por conta do encontro com o Guel Arraes,” diz ele, que ali passou a trabalhar por obra.
Junto do diretor, Nanini participou de especiais com a adaptação de textos de grandes escritores, como O Alienista, de Machado de Assis, além da série A Comédia da Vida Privada, entre 1995 e 1997, inspirada em Luis Fernando Verissimo.
A parceria com Arraes se estendeu ao teatro com O Burguês Ridículo (1996/1997) e aos filmes O Auto da Compadecida (2000) e Lisbela e o Prisioneiro (2003). “Fomos muito felizes e mudou totalmente o meu jeito de fazer e encarar a televisão”, diz o ator que, entre 2001 e 2014, interpretou Lineu, o paizão do seriado A Grande Família, outro projeto de Arraes.
Mas o tempo, sempre implacável, atingiu Nanini, especialmente na última década, e as limitações físicas se fizeram evidentes. Ele reconhece que hoje seria impossível enfrentar uma montagem como O Mistério de Irma Vap, com dezenas de trocas de roupas, uma movimentação incessante, em seis ou sete sessões semanais. Mesmo Pterodátilos, peça de 2010, que tinha um cenário móvel, que girava e se desmontava, seria complexa, ele reconhece. “Parei de fumar, faço fisioterapia e pilates porque uma hora a gente entende que deve cuidar do corpo para estar pronto para os desafios de um espetáculo.”
Mesmo diante de precauções, o artista ainda é apanhado de surpresa, e as cortinas da temporada carioca de Traidor foram fechadas antes do previsto, em abril. Agudas dores no joelho causadas por esforço repetido se manifestaram durante uma sessão e geraram o rompimento do menisco na quarta semana de apresentações. Fisioterapia e pilates intensificados garantiram a reestreia em São Paulo.
É este Nanini combalido – mas jamais vencido – que mais uma vez encanta e provoca.