Aspen não é o primeiro lugar em que se pensa quando falamos de arte e cultura. Mas a cidade quer mostrar ao mundo seu passado notável neste quesito, e provar que é mais do que apenas a destinação de ski favorita dos ultra ricos. 

A tese é defensável.

Em 1949, o casal Walter Paepcke, um empresário americano de origem alemã, e sua mulher, Elizabeth Paepcke, uma amante da cultura e da natureza, descobriram Aspen, então uma cidadezinha mineradora de prata quase abandonada nas montanhas do Colorado.  O casal enxergou ali potencial para centralizar uma renovação intelectual e social.

 Junto com um antigo reitor da Universidade de Chicago e um filósofo judeu proeminente na época, o grupo resolveu organizar um seminário para discutir ali, longe da vida industrializada da cidade, as consequências do, digamos, “desvio democrático” vivido na Europa.

 Escolheram comemorar o bicentenário de Goethe, que consideravam o máximo da civilização alemã e humana por sua capacidade de integrar diferentes modos de conhecimento e alta sensibilidade humanística ao invés de focar nas deturpações éticas, sociais e filosóficas que ocorreram desde o começo do século XX.

O encontro aconteceu no verão, sob um céu azul de dia e um estrelado à noite, com o crème de la crème da época nos campos da música, arte e literatura, tendo o escritor alemão Thomas Mann como a figura central.

 O comitê esperava que “o espírito humanista de Goethe pudesse informar um renascimento do pensamento e da ação após duas guerras mundiais, uma grande depressão, a desumanização da sociedade pela tecnologia, a ameaça do totalitarismo soviético e as realidades destrutivas da bomba atômica.” Sounds familiar?

O impacto da conferência foi tão grande que o casal Paepcke criou em 1951 o International Design Conference of Aspen (IDCA), inspirado na filosofia da Bauhaus, visando promover a colaboração entre artistas, designers e industriais.

Paepcke acreditava na articulação do conhecimento filosófico e artístico com o progresso industrial, e que esses mundos deveriam estar mais conectados e próximos.

Com a presença de luminares da época – como Josef Albers, Charles Eames e Louis Kahn – o IDCA se formou como um hub para discussões de design, arte e indústria. Ícones como Billie Holiday, John Cage e Susan Sontag se apresentaram ali ao longo dos anos seguintes. Em 1983, o jovem Steve Jobs fez um discurso sobre o futuro da tecnologia; entrou para a história.

Dentro desse contexto, nos anos 70 a comunidade local e os artistas residentes transformaram uma planta de energia desativada na sede do Aspen Center for the Visual Arts (ACVA), renomeado na década seguinte como Aspen Museum of Art. 

 A proposta dos artistas foi estabelecer uma instituição dinâmica e inovadora, onde se discutissem arte e questões contemporâneas. O centro cultural seria gratuito, sem acervo ou exposição permanente, com o compromisso de promover estudos e debates e trazer artistas americanos para mostras temporárias. 

 A primeira exposição, em 1979, se chamava American Portraits of the Sixties and Seventies, com trabalhos de Diane Arbus, Richard Avedon, Chuck Close, Willem de Kooning, Jasper Johns, Roy Lichtenstein, Robert Mapplethorpe, Claes Oldenburg e Andy Warhol – um respeitável time de estrelas. 

 Em 2005, com a chegada de uma nova curadora, o museu passou a apresentar jovens artistas americanos e internacionais que despontavam na cena cultural, atraindo para seu conselho empresários e colecionadores de peso.

2006 foi o último ano do festival do IDCA; e em 2007, foi decidido que o museu precisava de uma sede à sua altura.

O conselho da época escolheu o premiado arquiteto Shigeru Ban para uma obra milionária, criticada como “starchitecture” e supostamente mais apropriada para um ambiente urbano. Entre muitas polêmicas, a sede ficou pronta em 2014.

 Os intelectuais reclamaram que o lado elitista prevaleceu. Ocorre que Aspen mudou drasticamente – de uma montanha idílica e desconhecida do começo do século para abrigar hotéis, lojas e restaurantes luxuosos, além de segunda residência dos maiores bilionários americanos, muito desses influentes colecionadores, como a família Cisneros e os Lauder, para citar os mais conhecidos.

Como nem só de marcas, ostentação e champanhe vivem os frequentadores de Aspen, o Aspen Museum passou a chamar atenção, captando recursos fartos e montando um endowment milionário, o que possibilitou ampliar a qualidade das exposições e atrair os melhores profissionais, gerando respeito na comunidade artística global. 

  Nesse contexto surgiu o AIR festival, uma iniciativa do Aspen Museum of Art que começou ontem e vai até 1º de agosto, com a ideia de se transformar em um acontecimento anual. 

 Com orçamento de US$ 20 milhões, a edição deste ano foi intitulada Life As No One Knows It. Inspirada no livro homônimo da física Sara Imari Walker, ela objetiva questionar o que significa estar vivo em uma era de rápidas mudanças tecnológicas. 

 O AIR quer unir o presente e o passado de Aspen, usando da abundância de recursos para retomar os ideais das conferências iniciais.   

 As palestras, debates e trabalhos encomendados pelo festival se espalharão por Aspen, enquanto um retiro reunirá pensadores de diversas disciplinas para gerar novas ideias.

 “Vislumbramos um mundo em que artistas contemporâneos sejam reconhecidos como líderes cujas ideias expandem nossa consciência. Como um destino em constante evolução para programação centrada no artista e intercâmbio interdisciplinar, engajamos comunidades locais e globais explorando o poder da arte para promover novas formas de pensar, processar a complexidade e fomentar a conexão humana,” diz a apresentação do evento. 

Os participantes desta edição poderão visitar a exposição temporária – em cartaz no Aspen Museum –  da brasileira Solange Pessoa, que ganha cada vez mais reconhecimento depois de sua participação na Bienal de Veneza de 2022 com outra exposição simultânea em Glasgow. 

Aspen pode ser o exemplo mais improvável, mas é mais um caso em que o investimento no capital imaterial dos humanos – focado na convivência pacífica, no pensamento filosófico e artístico e estimulando o debate de ideias (de preferência presencial) – é o único caminho sustentável para o progresso, seja nas artes, na ciência ou na política.

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Obra de Solange Pessoa (Deliria Deveras, 2021–2024).