Quase 50 anos depois da morte de Di Cavalcanti, duas obras inéditas do pintor de figuras humanas volumosas estão sendo expostas na mostra Di Cavalcanti 125 anos, na galeria Danielian, no Rio de Janeiro.
A mostra termina no próximo fim de semana mas está em conversas para ser apresentada no ano que vem em São Paulo.
Os irmãos Danielian, que atuam no mercado secundário carioca, apresentam ao público pela primeira vez as pinturas Carnaval e Bahia, criadas durante o exílio do artista em Paris na década de 30 e desconhecidas até recentemente.
Além das duas obras reencontradas, a curadora Denise Mattar selecionou e conseguiu empréstimos de obras relevantes que estão em coleções particulares de São Paulo, Rio, Salvador e Fortaleza.
“Essas obras traçam o percurso de Di Cavalcanti de 1920 a 1970, através de seu tema favorito – o povo brasileiro – com suas mulheres, festas, sambas e carnavais,” Denise disse ao Brazil Journal. “O conjunto proporciona a oportunidade única de ver algumas de suas obras-primas e também de acompanhar sua trajetória pictórica, pesquisas estéticas, opções construtivas e afinidades eletivas.”
A obra mais icônica de Di, Samba, foi destruída no incêndio do apartamento do marchand Jean Boghici, em Copacabana, 10 anos atrás. Depois disso, Carnaval passou a ser considerada uma das obras mais importantes do artista.
Além das duas descobertas, alguns destaques da exposição incluem um conjunto de 16 gravuras realizado por Di em 1921, acompanhado de texto do poeta Ribeiro Couto, e editado por Monteiro Lobato, “um álbum extremamente moderno para a época e de grande impacto até hoje, e que foi o ponto de partida da Semana de Arte Moderna de 22,” disse a curadora.
Há ainda primores como Seresta (1925), um trabalho icônico que se reporta à musicalidade dos morros cariocas, e Três Mulheres (1938), em que Di dramatiza o pesado corpo da protagonista com uma saia num vermelho vibrante – mas ao mesmo tempo torna seus crespos cabelos leves e etéreos usando a difícil técnica do scratch-board, na qual o pintor retira uma parte da tinta com o cabo do pincel.
Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo nasceu em 6 de setembro de 1897 no Rio de Janeiro. Era sobrinho do grande jornalista e abolicionista José do Patrocínio (casado com a irmã de sua mãe).
Di cresceu em uma casa frequentada por artistas e intelectuais como Olavo Bilac, entre saraus e discussões políticas, e aprendeu desde jovem o prazer da vida boêmia.
Mas a coisa apertou com a morte de seu pai, o que obrigou o jovem Di a trabalhar para ajudar a mãe a pagar as contas. Aos 17 anos, foi trabalhar instalando dormentes na Estrada de Ferro Mogiana, em Campinas.
Depois começou a fazer ilustrações para a famosa revista Fon-Fon, focada em caricatura política no Rio, até se mudar para São Paulo em 1916 para estudar na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. (Aliás, cursar Direito deve ser um bom começo artístico, já que a lista de grandes artistas bacharéis é longa, encabeçada por Matisse e Kandinsky).
Na USP, Di conheceu Mário e Oswald de Andrade, com quem idealizou a Semana de Arte Moderna de 1922, criando peças promocionais como o catálogo e o programa, além de expor 11 telas suas.
Sua habilidade como desenhista e ilustrador já eram reconhecidas no eixo Rio-São Paulo.
Em seu livro Metrópole à Beira Mar, Ruy Castro defende que o verdadeiro moderno do grupo e principal idealizador da Semana foi Di, o responsável por trazer Villa-Lobos – até então pouco conhecido dos paulistas e integrante da patota de boêmios de Di, que também incluía o escritor Graça Aranha e o poeta Manoel Bandeira. (Villa-Lobos tocava com o mesmo entusiasmo, fosse nos barzinhos da Lapa ou no Municipal).
Em sua primeira viagem à Europa, em 1923, como correspondente do Correio da Manhã, Di expôs suas pinturas em Paris, Londres e Roma, e teve a oportunidade de conviver com artistas que muito o influenciaram, como Picasso, Léger e intelectuais franceses de cujas ideias modernas compartilhava. Voltou ao Brasil engajado em questões sociais e filiou-se ao Partido Comunista em 1928. Dado seu ativismo, foi preso diversas vezes – curiosamente, tanto por ser pró-Getúlio quanto contra-Getúlio.
Na última vez que saiu da prisão (graças à ajuda dos amigos), teve que ir direto para o exílio em Paris, onde ficou até 1940.
Suas duas saídas abruptas do País, sem planejamento, fizeram com que Di tivesse que sempre recomeçar do zero. Dizia que “além dos bens que obtenho com a minha imaginação, nada mais ambiciono”, e vivia satisfeito entre os livros, pincéis e a boa boemia. Os especialistas consideram que os anos 20 e 30 foram seus períodos de melhor produção.
Na II Bienal de São Paulo, em 1953, recebeu o prêmio de pintor nacional junto com Alfredo Volpi e, nessa época, transformou-se em crítico feroz do abstracionismo e dos acadêmicos.
Di queria construir uma identidade nacional através da ruptura com o formalismo da academia, que seguia padrões europeus. Como tinha passado muito tempo na Europa, Di não ignorava o que estava acontecendo fora do Brasil, mas defendia um diálogo mais livre e adaptado à realidade brasileira. Desejava criar uma linguagem própria para retratar nosso cotidiano e a boemia que ele tanto amava – com o samba, o carnaval, as mulheres brasileiras, as praias e os trabalhadores. Sua articulação social e seu conceito estético abriram caminho para outros pintores modernos.
Di morreu em seu apartamento no Catete, perto do Centro do Rio, em 1976.
O escritor Fernando Sabino ressaltou certa vez que Di talvez seja, na história da arte brasileira, “o único exemplo de grande pintor com formação cultural de um verdadeiro homem de letras. Era o único artista plástico que frequentava nossa roda de escritores. Quem o visitar hoje no seu apartamento na Rua do Catete compreenderá logo por quê. Para começar são dois apartamentos ligados pela área de serviço, completamente diferentes um do outro, como se pertencessem a dois moradores. Um abriga o pintor, o outro, o escritor.”
Di participou ativamente na formação do pensamento cultural da sua época. Apesar da profundidade intelectual e política, era um homem que refletia os costumes de seu tempo.
Hoje suas obras são objeto de estudo e revisão crítica, principalmente pela forma como retratou as mulheres. As brancas, em geral “de sociedade”, eram retratadas com roupas elegantes, e cada obra tinha um título com nome e sobrenome da retratada. Já as negras usavam vestidos decotados, em poses sensuais, e não tinham nome, conhecidas apenas como Mulatas (são dezenas de pinturas assim intituladas).
Da mesma forma que se argumenta que em sua obra houve uma valorização da mulher negra, por incluí-las na história oficial do retrato brasileiro, o que até então não havia sido bancado por pintores renomados, por outro lado, ao enfatizar somente a sensualidade nos retratos da mulher negra, como na literatura de Jorge Amado, Di perdeu a chance de romper com estereótipos tão prejudiciais às mulheres.
Di até quebrou o padrão em alguns quadros em que mulheres negras foram retratadas de forma elegante e respeitosa – o que traz complexidade à análise do conjunto de sua obra.
Di era um humanista, apaixonado pelo lado festivo, sensual e leve da vida e do seu País. Em carta a Mario de Andrade em 1930, deixou isso às claras: “(…) não quero nunca realizar obras-primas como quis o Brecheret, o Villa e mesmo já o Celso Antonio (…) Eles não amam a vida. Amam a arte como a um mito. E eu amo sobretudo a vida que vem como os calores sexuais, de baixo para cima…”