Um conselho do ator Walmor Chagas (1930-2013) reverbera até hoje na mente de Clarice Niskier. Em 1999, os dois contracenavam como pai e filha na peça Um Equilíbrio Delicado, de Edward Albee (1928-2016). Nos bastidores, o veterano lhe disse, “não se duble, respeite as mudanças da sua voz e do tempo”.

Ano que vem, faz duas décadas que Niskier, hoje com 65 anos, protagoniza o monólogo A Alma Imoral, adaptação do livro do rabino Nilton Bonder. São quase 4.000 apresentações para 750.000 espectadores desde junho de 2006, e uma nova temporada teve início neste sábado no Teatro Cultura Artística, em São Paulo. “Nunca desejei lotar um Maracanã e, de 200 em 200 pessoas, me imagino com este projeto até ficar velhinha.”

A montagem, supervisionada pelo diretor Amir Haddad, reúne uma série de parábolas e reflexões que contrasta conceitos de obediência e transgressão, certo e errado, traídos e traidores, tudo embebido por filosofias judaicas e budistas. O público é hipnotizado pela oratória da artista, e não são raros os que retornam para assisti-la cinco, dez ou mais vezes.

Para se manter instigada, a intérprete recorre ao aviso de Walmor Chagas e cria as próprias técnicas que a impedem de ser guiada pela automatização. A mais comum é pegar o livro de Bonder, abri-lo em uma página qualquer e ler um trecho, como se fosse a primeira vez.

Sempre que recorre ao método, Clarice renova a compreensão do texto de acordo com as experiências daqueles últimos dias e, se começa a se surpreender, a leitura assume o caráter de ineditismo.

“Meu ensaio é o estudo comparativo do meu momento e do contexto histórico para entender a transgressão atualmente,” explica. “Hoje é Gaza e Israel, Hamas e Irã, Lula e Trump, não posso pensar com a mesma cabeça de 20 anos atrás porque, assim como o mundo, eu mudei.”

A atriz idealizou o espetáculo logo depois de ser presenteada por Bonder com um exemplar do livro em um programa de televisão. Foi movida por um sentimento de desobediência alimentado pela ânsia de libertação de padrões que a aprisionavam. Na maior parte da peça, Clarice aparece nua em uma exposição que desafia a própria vaidade dada a inevitável passagem do tempo. O único figurino é um pano preto, que se transforma em oito vestes, como mantos, vestidos e burcas.

Depois dos 60, ela se sente mais plena e bem acomodada às suas formas que aos 30 ou 40 anos. Em suas palavras, nunca se inseriu em um padrão de beleza ou se tornou conivente com as regras do mercado. “Vinte anos depois, meu rosto envelheceu, meu corpo ficou arredondado e sou uma mulher instalada na menopausa,” me disse Clarice. “Venho trabalhando com a finitude desde que entrei em contato com esse texto e, assim, a minha alma fica fortificada.”

Clarice lançou A Alma Imoral em um teatro de 50 lugares com um investimento modesto de R$ 30.000. Em quinze dias, os ingressos para a temporada se esgotaram, e ela se transferiu para uma sala capaz de acomodar 350 pagantes. Lotou todas as noites. Em 2007, chegou a São Paulo no Teatro Eva Herz, da antiga Livraria Cultura, que ocupou por onze anos.

Além da protagonista, a equipe conta apenas com um produtor e um técnico, o que facilita as viagens para qualquer canto do país, às vezes de avião e outras de ônibus, de acordo com o preço das passagens.      

A intérprete entendeu que aliar um ou mais projetos à carreira de A Alma Imoral só melhoraria sua performance e, desde 2015, quando estreou o solo A Lista, da canadense Jennifer Tremblay, aposentou a dedicação integral.

Em 2019, Clarice criou A Esperança na Caixa de Chicletes Ping Pong, um solo poético-musical em cima da obra do compositor Zeca Baleiro, e, dois anos depois, foi a vez de Coração de Campanha, texto de sua autoria em que contracena com o ator Isio Ghelman para ponderar sobre os efeitos da pandemia na relação de um casal. No último ano, acomodou na agenda as gravações da novela A Caverna Encantada, no SBT.

Hoje, A Lista é regularmente apresentada em empresas e convenções, e A Esperança na Caixa de Chicletes Ping Pong volta assim que for contemplada em algum edital.

A Alma é insuperável e não posso competir comigo mesma,” diz. “Qualquer trabalho novo mexe com minhas emoções e me coloca diante de desafios técnicos que acrescentam nesse que continuo fazendo.”

A longevidade de A Alma Imoral deu à artista certa estabilidade, inédita numa trajetória profissional iniciada no começo da década de 80.

Mas os lucros não se traduzem necessariamente em um acúmulo na conta bancária ou em investimentos que vão além dos projetos teatrais.

“Ganhei a chance de fazer as coisas como penso que devem ser feitas e no meu ritmo. Se tivesse me moldado a um padrão eu não teria sobrevivido e, hoje, não seria a atriz que me orgulho de ser.”