“Chico Anysio não era ator: era médium”, classificava Paulo Cesar Pereio, outro mestre do ofício, reconhecendo a capacidade do humorista em se dividir (ou se multiplicar) em 209 personagens ao longo da carreira.
A versatilidade para inventar rostos e vozes e a capacidade para observar tipos e reinterpretá-los eram as marcas registradas do humorista, mas Chico oferecia ainda mais: seus personagens – alguns claramente caricaturais – tinham estilo, personalidade, alma, CPFs próprios. E tudo isso vinha amarrado pela sabedoria de um autor que sabia escrever: os textos eram parte decisiva na composição. Chico não apenas fazia rir; quase sempre, fazia pensar.
É este retrato preciso que emerge em Chico Anysio: Um Homem à Procura de um Personagem, o sensível e competente documentário escrito e dirigido por um dos filhos do humorista, o ator e roteirista Bruno Mazzeo.
Para recuperar a trajetória de oito décadas de vida de Chico Anysio – que morreu em março de 2012, prestes a completar 81 anos – e uma carreira iniciada aos 17 anos na Rádio Guanabara, ao lado de Silvio Santos, para quem perdeu um concurso de locutor, Bruno revira arquivos com imagens raras e entrevista quase todo mundo que esteve intimamente ligado ao humorista.
A única exceção é Malga de Paula, a última mulher, com quem Bruno e os irmãos ainda duelam nos tribunais pela herança – inexistente e/ou consumida por dívidas, como muitos admitem no documentário.
“Assuntos supostamente relacionados aos procedimentos legais da sucessão de meu pai extrapolaram seu campo de discussão próprio, que é a Justiça, para compor o noticiário de mídia especializada em ‘celebridades’. Popularmente conhecida como ‘fofoca’. A fonte de divulgação é a última das esposas de meu pai, Malgarete,” escreveu Bruno numa nota divulgada nas redes sociais em 2020.
O formato cronológico e convencional ajuda a compreender melhor a cabeça de Chico Anysio, um homem atormentado e marcado pelo trauma – bem lembrado pelo irmão caçula, Zelito Viana – de ter vindo de um lar desestruturado e comandado por um pai (dono de uma pequena empresa de ônibus em Maranguape, no Ceará) que mantinha outras duas famílias paralelas, uma no Maranhão, outra no Piauí. Na mudança para o Rio, no final dos anos 30, Chico veio com a mãe e três irmãos, mas sem o pai.
Isso talvez explique por que nem mesmo o enorme sucesso, o enriquecimento rápido e o fato de ter vivido e trabalhado cercado por parentes (e é curioso notar como os sobrenomes se fragmentam em uma mesma família: Paula, Anysio, Viana, Gigliotti, Palmeira, Mazzeo…) foram capazes de fazer de Chico um sujeito mais sereno e menos angustiado.
Para diagnosticar melhor o drama do pai, outro filho, Nizo Neto, revela que Chico carregava amarguras e depressões, com uma imagem privada bem distante da aparência pública da figura engraçada e bem-humorada.
Se Chico foi um homem à procura de um personagem, Bruno surge como um filho à procura do pai. Não é desprezível o desafio de resumir a carreira e a vida de Chico Anysio em cinco episódios de 45 minutos sem fugir das polêmicas e das bolas divididas, mesmo quando ele próprio, Bruno, faz parte da história.
Defensor do casamento, Chico teve relacionamentos oficiais com seis mulheres. “Casar é certo mesmo quando você se casa errado. Daquele casamento errado dá-se um filho certíssimo,” explicava ele. As duas primeiras, Nancy Wanderley e Rose Rondelli, já falecidas, aparecem em imagens de arquivo e no depoimento dos filhos.
Já as outras três, a atriz Alcione Mazzeo, a ex-Frenética Regina Chaves e a ex-ministra Zélia Cardoso de Melo, enriquecem o documentário com suas versões.
Por exemplo: ao abordar o casamento de Chico com sua mãe, Bruno arranca dela a confissão de que a causa da separação foi a tentativa do humorista de impedir que ela posasse nua para uma revista masculina. “Eu perguntei: ‘Chico, o que você acha?’. Ele falou: ‘Tudo bem’,” lembra a atriz.
“Mas quando ele viu que o negócio seguiu, acho que aquilo foi, sabe, movimentando dentro dele. Porque ele sempre conseguia fazer minha cabeça sem assumir. Naquele momento, ele já não tinha conseguido mais. Eu já tinha assinado,” completa ela, lembrando que Chico chegou a propor cobrir a oferta da revista para que ela desistisse. Alcione não aceitou. “Chico era um pouco coronel em casa,” constata a sobrinha Cininha de Paula.
Outro casamento, este com uma mulher que rivalizava em matéria de exposição pública com ele, também é lembrado. “O homem mais amado do país se uniu à mulher mais odiada do Brasil,” explica Zelito ao falar do enlace de Chico com Zélia.
Mas Chico, dizem, não se abalou. Zélia admite que a enorme rejeição que ela sofreu à época pode ter interferido na carreira dele. Uma das decisões tomadas pelo casal, já com dois filhos, Rodrigo e Victoria, foi se mudar em 1997 para Nova York. Entrevistada, a única filha de Chico pediu para responder em inglês, argumentando não ter familiaridade com a língua do pai.
Mas nada atormentava mais Chico Anysio do que ficar longe dos palcos, microfones e telas. “Não tenho obrigação de solucionar os problemas. O meu dever é fotografar o drama. A comédia nada mais é do que o drama de ontem,” definiu sua profissão ao mesmo tempo em que detalhava o seu método.
“Eu sou aquele que faz vários. Foi uma opção de carreira,” disse, reconhecendo que jamais conseguiria competir com o rosto pétreo, enigmático e único do humorista Walter D’Ávila. Dessa forma, Chico, por toda sua carreira, não apenas readaptou os personagens que havia criado para o rádio como inventou uma nova forma de fazer TV.
A série detalha ainda, no terceiro episódio, a resistência de Chico à chegada de uma nova geração de humoristas, em especial os ligados ao programa TV Pirata. Rechaçado, com suas sugestões consideradas ultrapassadas, Chico revoltou-se com a situação e chegou a negociar sua ida para outra emissora ao mesmo tempo que usava a imprensa para criticar as decisões internas da Globo que o incomodavam. Resultado: não saiu da Globo e ainda foi suspenso.
A ascensão do novo humor nos anos 80 foi também o primeiro recado de que poderia ser a hora de se aposentar, ou pelo menos de diminuir o ritmo. Chico não aceitou. Continuou se apresentando em teatros Brasil afora, brigou pela permanência de seus programas – mesmo quando esses foram rebaixados e transformados em quadros de outros programas – e tirou dinheiro do próprio bolso para pagar muitos comediantes que o acompanhavam.
Negava-se a acreditar em índices de audiência – “O Ibope indica quantas pessoas viram, não quantas gostaram,” definiu em uma tirada genial, completada por uma análise ainda mais brilhante, como essa feita em entrevista ao Roda Viva em 1993: “Diziam que eu era gênio e eu tive a genialidade de não levar isso a sério. Não é agora que me chamam de idiota que eu vou cometer a idiotice de acreditar.”