Há a “destruição criativa” que move a inovação – e há a destruição destruidora das bets.
A febre das apostas e cassinos online deve subtrair até 0,3% do PIB brasileiro em 2024.
Os setores mais afetados pela destruição de valor das apostas deverão ser aqueles mais diretamente ligados ao consumo popular, além das empresas de saúde, educação e instituições financeiras.
As estimativas são do time de research do Santander, em um relatório amplo e detalhado que analisa o impacto das apostas online na economia, nos principais setores e nas empresas listadas.
O banco usou como base um estudo do Banco Central e os números das contas externas, além de cruzar os dados com números de outros países onde as bets já se popularizaram há mais tempo.
Como ainda não existem estatísticas objetivas, há muita incerteza sobre o tamanho efetivo dos gastos, mas o Santander estima que os brasileiros vão desembolsar entre R$ 71,3 bilhões e R$ 239,4 bilhões com as apostas este ano.
Essa é a despesa bruta total. O resultado líquido, considerando os prêmios recebidos, deverá ficar entre R$ 25,7 bilhões e R$ 35,9 bilhões – o que resulta em um impacto negativo na economia equivalente a algo entre 0,2% e 0,3% do PIB.
É uma conta que pode estar subavaliada, porque uma parte significativa (mas desconhecida) das apostas trafega por sites e aplicativos sem registro legal no País.
Ainda segundo o banco, o total arrecadado em impostos e taxas sobre as bets este ano deverá ficar entre R$ 3 bi e R$ 3,4 bi, e entre R$ 5 bi e R$ 10 bi em 2025 – quando as apostas vão começar a funcionar legalmente.
Para o banco, as receitas tributárias obtidas muito provavelmente serão inferiores aos gastos em saúde motivados pelos problemas mentais do vício em apostas.
“De maneira geral, a legalização das apostas online parece ter afetado negativamente a saúde financeira e mental dos consumidores, assim como o consumo – especialmente nas camadas de baixa renda,” escrevem os analistas do Santander.
O relatório foi elaborado por Maria Paula Cantusio, a head de análise ESG e relatórios temáticos; Henrique Navarro, head de bancos; Ruben Couto, head de varejo; Fanny Oreng, head de real estate; e Caio Moscardini, o head de saúde e educação. Houve também a contribuição do time de macro.
Entre as empresas listadas na B3, as que deverão sentir o maior impacto negativo são as de varejo, bens de consumo, instituições financeiras, educação e saúde.
“Os setores que mencionamos no estudo precisam acompanhar com atenção os efeitos, porque a experiência internacional mostra que, quase sempre, ocorre um impacto negativo,” Maria Paula disse ao Brazil Journal.
“Toda a receita que o Governo vai arrecadar com as licenças e impostos não deve compensar o custo das apostas, que acabam desviando recursos que deveriam ir para o consumo, para a educação, para a saúde e para a poupança das pessoas,” disse a analista. “Por isso, a China acabou banindo esse tipo de aposta.”
O “investidor típico” do Brasil é homem, mora no Sudeste e pertence a estratos sociais mais baixos.
Mesmo que uma parcela dos gastos nas bets volte na forma de prêmios, o retorno é concentrado em alguns poucos vitoriosos, enquanto a maior parte acumula um prejuízo difuso; portanto, é o gasto bruto que deverá ser observado para identificar os efeitos setoriais, afirmam os analistas.
Dessa maneira, é melhor analisar o estrago causado pelo gasto bruto em apostas, que poderá superar 2% do PIB, do que focar na despesa líquida de ‘apenas’ 0,3% do PIB.
“É difícil imaginar que um apostador que ganhe muito dinheiro saia correndo para comprar mais roupa ou algo do tipo,” disse Ruben Couto.
“A maior probabilidade é que ele mantenha o dinheiro em caixa e faça novas apostas,” afirmou. “Na minha opinião, acho que a fotografia do gasto bruto é mais relevante, o quanto isso morde no bolso do consumidor na hora da decisão de consumo.”
O consumo de itens discricionários, como lazer, roupas e acessórios, deverá perder espaço para as apostas, como já parece estar acontecendo.
Olhando para as ações de varejo listadas, o Santander vê maior impacto potencial em empresas como CVC, Arcos Dorados, Vulcabras e Grupo SBF.
As menos atingidas deverão ser as de gastos essenciais, como a Pague Menos.
Os gastos com as bets já estão aparecendo nos números da inadimplência. No primeiro semestre, um total de 1,3 milhão de pessoas atrasou o pagamento de dívidas por causa das despesas com apostas e cassinos digitais.
Os cartões de crédito não podem mais ser usados nas plataformas de bets. Mas mesmo os apostadores mais estrangulados financeiramente têm conseguido se alavancar recorrendo a empréstimos pessoais e financiamentos tipo o Pix parcelado, oferecido por alguns bancos. Mais de 70% das apostas são feitas pelo Pix.
No setor financeiro, empresas de pagamentos como Stone e PagSeguro estão expostas a riscos como a queda no consumo e também possíveis regulações para restringir o uso dessas plataformas no pagamento de apostas.
Para Henrique Navarro, um ponto de atenção entre os bancos deve ser o crediário dado por Pix, uma opção que começa a ser impulsionada por algumas instituições.
“Perguntamos para os bancos mais agressivos nessa modalidade se eles estão monitorando o endividamento excessivo por causa das apostas. Eles dizem que sim, mas é difícil imaginar como essa supervisão poderá ser feita de maneira maciça,” disse Henrique.
Na opinião do analista, o susto já causado no setor financeiro deverá trazer regras mais rígidas, como a proibição do uso do Pix parcelado.
Em educação, o ensino a distância deverá ser o mais exposto à competição com os cassinos virtuais e as bets esportivas. Vitru, Cogna e Yduqs poderão sentir o maior impacto.
Em healthcare, a Hapvida – com grande parcela de clientes na baixa renda – deverá sentir o efeito das maiores despesas com terapias. Mas o maior custo mesmo deve recair sobre o sistema público, que atende a maioria das pessoas das classes C,D e E.
Os shoppings estão menos expostos, porque a maior parte de seu público vem das classes mais altas. Dentro do varejo, nomes como Multiplan e Iguatemi poderão sofrer menos nas garras do tigrinho.
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