Há diversas narrativas sobre a transição energética — e muitas acabam vistas como verdades absolutas.
A Atmos Capital está tentando diferenciar o fato da versão.
Numa carta a investidores recém-publicada, a gestora do Leblon critica a narrativa do ‘Brasil potência verde’; defende os carros elétricos e os híbridos movidos a etanol como a alternativa mais sustentável para o Brasil; e aponta o gás como o grande vencedor da transição.
A carta — que encerra uma trilogia da Atmos sobre o assunto — aborda a “disrupção tecnológica e institucional” no setor de energia.
A análise parte de dois vetores de transformação: a revolução dos semicondutores, que levou à queda expressiva de preço dos paineis solares e, combinado à vontade política de incentivar a transição, resultou no crescimento da geração distribuída; e a evolução das baterias de lítio em termos de custo e performance, o que está viabilizando os veículos elétricos.
A análise da Atmos mostra que a dinâmica dos EVs, somada à maior eficiência dos híbridos, indica um futuro no qual o share de quilômetros rodados seja cada vez mais elétrico.
“É importante lembrar que o EV é mais eficiente do que o carro à combustão mesmo quando alimentado por eletricidade gerada a partir de termelétricas fósseis. (…) No caso do grid brasileiro, com sua maciça penetração de fontes renováveis, a vantagem se amplia”, diz o texto.
Além dos ganhos de eficiência, o custo dos carros elétricos continua caindo.
Nesse cenário, para a gestora, olhando para o setor de locação de veículos – a Atmos é uma grande acionista da Localiza – a dinâmica de concentração de poder na mão dos grandes compradores segue intacta.
“Como parcela relevante da rentabilidade das locadoras está ancorada em um mercado automotivo estruturalmente sobreofertado, no qual a concentração de demanda garante condições comerciais superiores, a entrada de novos fabricantes pode, inclusive, ser bem-vinda,” diz a gestora.
O risco existencial para esse segmento são os carros autônomos, que começam a se desenhar num futuro próximo em alguns países, mas ainda estão distantes do Brasil.
Já no negócio de distribuição de combustíveis, as receitas ficam diretamente ameaçadas por um futuro mais elétrico. “Parte significativa do lucro econômico vem da comercialização de combustíveis para carros leves em postos urbanos, a primeira linha de ataque dos EVs. O equilíbrio benéfico do oligopólio educado que vemos hoje, construído com esmero após a privatização da última estatal do setor, pode estar em risco,” diz a carta.
Para a gestora, um investimento no setor deveria “pressupor uma expectativa positiva quanto à alocação de capital com a esperança de transferir, de alguma forma, vantagens competitivas para novos segmentos. Seria, nesse caso, um retorno de renda fixa com risco de venture capital?”.
Sobre a GD, uma “concorrência inesperada” para as distribuidoras, a gestora avalia que os impactos vêm sendo limitados, porque as companhias são remuneradas com base numa taxa de retorno sobre a base de ativos regulatória. Mas os efeitos indiretos, num momento de instabilidade no setor, preocupam.
Segundo a carta, “seguimos expandindo um sistema sobreofertado por conta de distorções regulatórias, continuamos sem fornecer sinais de preço granulares efetivos e, a cada modificação, deixamos o modelo de formação de preço ainda mais opaco. Seguimos com a obrigação legal de contratação de energia inflexível e com o fantasma dos jabutis nos assombrando”.
Reduzir esse grau de desordem, diz a carta, exigiria um esforço coordenado de redesenho regulatório e aperfeiçoamento dos mercados, “ajustando incentivos para direcionar os investimentos apropriadamente rumo ao desejo permanente, e até aqui utópico, de aprimorar a produtividade econômica brasileira”.
Nesse cenário de confusão setorial, tarifas crescentes e alternativas competitivas, já é economicamente viável para o consumidor residencial deixar o grid das distribuidoras. “É um tema que teremos que acompanhar com atenção nos próximos anos, já que a garantia de equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão das distribuidoras depende de uma base de consumidores pagando a conta”.
Na carta, a Atmos também trata do crescimento do mercado de gás natural — um tema que impacta diretamente duas grandes posições da gestora, Eneva e Compass, tida pela gestora como a “jóia da coroa” do grupo Cosan.
A Atmos diz que o gás vem conquistando o posto de ‘combustível fóssil de transição’ por sua menor pegada ambiental, e lembra que, por anos, campanhas exploratórias que encontravam reservas de gás não associadas ao petróleo eram consideradas um fracasso.
“No Brasil, até outro dia o mercado de gás não existia, era um monopólio espalhado em diferentes gerências da Petrobras. Com os desinvestimentos na produção, transporte e distribuição, hoje temos um jovem mercado que vem se tornando cada vez mais dinâmico e promissor.”
No entanto, as discussões relacionadas à oferta de gás, principalmente associado ao petróleo, vêm há alguns anos opondo Brasília, interessada em um gás mais barato para impulsionar a atividade industrial e retomar a produção de fertilizantes nitrogenados; e um operador focado em extrair o óleo, seu principal produto.
“Sem mercado capaz de absorver o gás, e sem infraestrutura física para escoá-lo, a reinjeção se consolida como opção natural. É o clássico dilema microeconômico: sem oferta não se desenvolve a demanda, e sem demanda não faz sentido econômico viabilizar a oferta.”
A Eneva, diz a Atmos, solucionou o desafio da monetização do gás natural ao integrar suas operações implantando termelétricas próximas aos campos produtores e convertendo o gás em eletricidade. Campanhas exploratórias permitiram à empresa ter reservas robustas para diversificar suas estratégias de comercialização. Atualmente, a Eneva explora alternativas com margens mais generosas, como a substituição do óleo combustível em processos industriais e de diesel no transporte rodoviário de carga.
“Essas características são vantagens estruturais que fazem da Eneva o agente mais competitivo para ofertar potência e flexibilidade ao sistema elétrico brasileiro,” diz a gestora.
A mesma racionalidade econômica que transformou a Eneva inspirou a criação da Compass, quando o grupo Cosan controlava a Comgás, a maior distribuidora de gás natural do país, mas que dependia exclusivamente da oferta de gás da Petrobras.
“Percebendo o potencial latente daquela demanda firme, o grupo implementou um projeto integrado de regaseificação de gás natural liquefeito (GNL), com ganhos tanto para o consumidor quanto para o empreendedor, reflexo do alto preço cobrado pelo monopolista tanto pela molécula quanto pela flexibilidade.”
Essa nova fonte de suprimento permitiu “destravar outras pontas”, estimulando tanto novas fontes de demanda quanto alternativas de oferta. “O resultado foi um ciclo virtuoso de geração de valor, com impactos positivos para a companhia e para o setor.”
Segundo a gestora, o desenvolvimento do mercado global de GNL “atua como um sistema de vasos comunicantes entre matrizes antes isoladas, ampliando o potencial de monetização para quem detém o acesso à molécula”.
Nas modelagens financeiras tradicionais do setor elétrico, o preço de energia costumava ser tratado como uma variável estática na avaliação da energia descontratada das empresas.
“Nesse novo cenário, a capacidade de atender ao sistema em momentos de escassez relativa fortalece a posição competitiva das fontes controláveis, atributo que justifica um tratamento diferenciado. Por uma contingência histórica, a Eletrobras detém hoje um volume relevante de energia hidrelétrica descontratada e pode se beneficiar dessa nova dinâmica,” diz a carta.
A Atmos diz ainda que num cenário de crescente entropia no setor, “a escolha estratégica de manter uma estrutura de capital relativamente conservadora revela-se prudente e alinhada aos interesses de longo prazo da companhia.”