Por quase três anos, o americano Walter Isaacson, de 71 anos, acompanhou o dia-a-dia do dono da Tesla, da SpaceX e do Twitter (perdão, X), participando de inúmeras reuniões profissionais daquele que, dependendo do preço da ação, é o homem mais rico do mundo – e, independente de qualquer coisa, é um dos empresários mais revolucionários da história recente.

O resultado chega hoje às livrarias de todo o mundo: a biografia Elon Musk, lançada no Brasil pela Intrínseca, em tradução de Rogerio W. Galindo.

Walter IsaacsonJornalista experiente, Isaacson já foi editor da revista Time e CEO da CNN. Já biografou Steve Jobs, Albert Einstein, Benjamin Franklin e Leonardo da Vinci, e dá aulas de história na Universidade de Tulane, em Nova Orleans, sua cidade natal.

Em suas biografias e livros de história, Isaacson diz buscar temas e personagens que permitam explorar as raízes da criatividade e da imaginação. Em Musk, descobriu o engenheiro minucioso, que conhece a fundo a matéria com que trabalha.

Musk deu amplo acesso e liberdade a seu biógrafo: deixou-o participar de reuniões de trabalho, atendeu-o dia e noite e não leu o livro antes da publicação (poucos o leram: por exigência do autor, foram oferecidos só alguns excertos da obra aos jornalistas que o entrevistaram).

Na conversa a seguir, Isaacson fala ao Brazil Journal sobre o gênio e o demônio que convivem dentro de Elon Musk.

O senhor passou quase três anos seguindo os passos de Musk. Não foi exaustivo?

Sim. É a montanha russa mais emocionante em que você pode entrar. Ele adora um drama. Mas Musk se mostrou muito aberto, o que me surpreendeu. E isso permitiu que eu contasse várias histórias sobre ele na biografia. No livro, não dou lições de moral às pessoas, como fazem tantos artigos de jornal [sobre Musk]. Eu digo ao leitor que ele pode embarcar na montanha russa e ver como esse cara é.

Que ideia preconcebida sobre Musk foi desfeita com a convivência?

Bem, eu achei que teria de entender uma pessoa, mas encontrei muitas versões de Musk. Ele passa por mudanças drásticas de humor, como se tivesse personalidades múltiplas. Às vezes você o encontra no modo engenheiro, que é muito divertido e muito focado no trabalho. Em outros momentos, ele está no modo bobão, com um humor juvenil, ou no modo raivoso, ou até no modo demônio sombrio. Você precisa aprender como essas diferentes personalidades se conjugam. O modo engenheiro foi o mais surpreendente. Eu não sabia da dedicação detalhista que ele dá não só ao produto final, mas ao modo como ele será produzido, à linha de montagem.

Como Musk fica quando assume o que você chama de “modo demônio”?

Houve momentos em que estávamos em pequenas reuniões, e ele entrava nesse modo sombrio. Musk se voltava contra um funcionário, quase sempre um jovem, e então dilacera esse funcionário por um longo tempo, dizendo que ele era péssimo, e que era inaceitável que ele não soubesse de uma coisa ou outra. Aquilo me parecia quase cruel. Mas, você sabe, é preciso gente mais durona do que eu sou para construir uma grande empresa.

O senhor não fez menção a um modo financeiro de Musk. Para ele, não é importante estar no topo da lista de pessoas mais ricas do mundo?

Se a sua motivação principal fosse o dinheiro, você não faria uma empresa de foguetes espaciais ou de carros elétricos e provavelmente não compraria o Twitter por US$ 44 bilhões. O que motiva Musk é a ideia de estar em uma missão épica. Ele tem de levar o homem a Marte. No meio desse percurso, ele busca formas de fazer dinheiro, e então cria sua própria internet colocando em órbita 5.000 satélites. Mas não foi por dinheiro que ele criou a SpaceX.

MuskAinda assim, ele deve dar alguma atenção ao lado financeiro. Com que frequência, por exemplo, ele verifica a cotação da Tesla no mercado?

Ele não faz isso com frequência. Eu cheguei a acompanhar Musk em pelo menos dez reuniões em um só dia, e no máximo uma delas teria a ver com os aspectos financeiros de sua companhia. Nunca o vi obcecado para elevar o valor de suas ações.

Musk vem se dedicando a uma variedade impressionante de atividades: energia renovável, carros autodirigíveis, exploração espacial, inteligência artificial, rede social, entre outros. Qual é sua maior motivação?

Creio que ele se interessa por três coisas desde seus tempos de estudante. Uma delas é a exploração espacial. Ele leu muita ficção científica e realmente acredita que a humanidade deveria viajar para outros planetas. Outra é a energia sustentável. Ele quer conduzir o mundo para uma era de veículos elétricos. Finalmente, ele se preocupa com a inteligência artificial. Desde que leu Isaac Asimov quando era garoto, ele teme que robôs e inteligência artificial possam prejudicar em vez de ajudar a humanidade. Esses são seus três objetivos fundamentais.

Em 2015, Musk esteve entre os primeiros investidores da OpenAI, que criou o ChatGPT, mas depois abandonou o projeto para criar sua própria empresa de inteligência artificial. Por quê?

Bem, quando ele e Sam Altman fundaram a Open AI, a ideia era de que ela seria uma empresa de fato aberta (open) – vale dizer, seu algoritmo seria aberto. Mais tarde, Sam Altman fez um negócio com a Microsoft, e Musk sente que a partir daí o empreendimento deixou de ser aberto. O que ele quer fazer agora é criar sua própria empresa de inteligência artificial. A ideia não é se dedicar a modelos amplos de linguagem, como faz a OpenAI. Musk quer inteligência artificial para o mundo real. Os exemplos disso seriam o carro autodirigível e o robô Optimus, que podem olhar para o ambiente humano e fazer o que humanos fazem.

Por falar em Sam Altman: ele recentemente disse à revista The New Yorker que “Elon quer desesperadamente que o mundo seja salvo, mas só se ele for o salvador”. Musk tem algum tipo de complexo de messias?

Desde que ele era criança, ele tinha a ideia de que poderia ser um tipo de herói épico. Ele lia histórias em quadrinhos, e achava os personagens ridículos por usarem a cueca em cima da calça – mas o importante é que eles tentavam salvar o mundo. Seja usando a Starlink (o braço da SpaceX que propaga a internet via satélite) para ajudar a Ucrânia, ou tentando nos levar para outros planetas, ou pesquisando inteligência artificial, ele tem esse complexo de herói épico.

Na sua avaliação, Musk vai conseguir levar o homem a Marte, ou seu esforço servirá para inspirar futuras gerações?

Eu acredito que Elon Musk se especializou em transformar o totalmente impossível no meramente tardio. Em outras palavras, ele força as pessoas a tentarem o que parece impossível e estabelece prazos impossíveis para essas tarefas. Em algum momento, essas coisas se realizam, mas não dentro do cronograma que Musk havia estipulado. Eu suspeito que só daqui a dez anos teremos a primeira missão a orbitar Marte e que ainda levaremos um ou dois anos até o primeiro carro totalmente autônomo. Musk acha que vamos chegar a esses objetivos mais rápido.

O senhor acompanhou de perto a acidentada aquisição do Twitter. Foi um bom negócio?

Achei a compra do Twitter uma ideia péssima, sobretudo porque Musk não tem sensibilidade para a emoção humana como ele tem para a engenharia. Ele mesmo costuma dizer, de brincadeira, que é autista, pois tem dificuldade em ler as emoções dos outros. Administrar uma rede social não me parece a melhor atividade para um homem assim. Eu estava na fábrica da Tesla com Musk, o irmão dele e alguns amigos quando ele falou que queria comprar o Twitter, e todos tentaram demovê-lo da ideia. Mas Musk tinha essa compulsão irresistível de fazer a compra, porque era sua atividade favorita na madrugada – depois de jogar videogames, ele entrava no Twitter para postar coisas malucas.

A promessa de Musk era tornar o Twitter – agora renomeado como X  – uma praça pública onde todos pudessem expressar sua opinião livremente. Mas ele já baniu alguns jornalistas da rede e posta mensagens hostis contra a nova esquerda identitária. Musk afinal veio equilibrar o jogo ideológico ou favorecer o lado pelo qual torce?

Creio que ele botou o dedo na balança para favorecer o pessoal anti-establishment, sobretudo a direita anti-establishment, que agora pode usar o Twitter para divulgar o que os antigos administradores da rede e até pessoas como eu chamariam de desinformação. Ele deve ter afugentado algumas pessoas da esquerda, e é uma pena. Sou de centro e ficaria feliz se o Twitter acolhesse gente da esquerda e da direita. Mas há mais gente usando o Twitter hoje, e mais tráfico.

Musk anda mais abertamente político do que foi no passado, não?

Sim. Também mudou sua linha política para a direita – antigamente, apoiava presidentes como Obama e Biden. Ele é muito direto em suas opiniões, inclusive quando tem ideias doidas e conspiratórias. Musk é assim: impulsivo, não tem filtro para suas declarações. E isso também o ajudou a alcançar o sucesso, pois ele não assumiria riscos se não fosse assim. Não gosto muito do modo como as ideias políticas de Musk vem evoluindo, mas, no livro, explico as razões dele.

Quais seriam essas razões?


Ele tem um filho que passou por uma transição de sexo e hoje é uma filha. Ele aceitou isso bem, mas depois ela se tornou uma marxista radical que ataca os ricos. O sentimento de Musk foi de que a ideologia progressista ensinada nas escolas infectou a cabeça de sua filha. Mas foi uma mudança longa e sofrida, baseada não só no distanciamento de sua filha – ela não fala mais com o pai –, mas também na reação de Musk contra o lockdown durante a pandemia. Há idas e voltas nesse processo. Hoje, ele está mais moderado.

Bari Weiss, jornalista do site The Free Press a quem Musk deu acesso a documentos que indicavam censura de opinião praticada pela antiga administração do Twitter, acredita que uma rede social oferece poder excessivo a seu dono, que pode manipular a opinião pública e até influenciar eleições com mecanismos que poucos entendem. Em linha similar, uma reportagem recente da The New Yorker sugere que a Starlink, rede de internet por satélite, conferiu a Musk um poder desmedido na Guerra da Ucrânia. Bilionários da tecnologia como Musk têm mesmo poder demais?

Creio que eles têm muito poder. Mas não estou convencido de que uma regulação sobre o que se pode ou não dizer nas redes sociais é uma boa ideia. Se os donos de redes sociais têm muito poder, como diz Bari Weiss, a resposta é termos redes sociais competindo umas com as outras, e não regulação do governo. Quanto ao fato de Musk ter o único sistema de comunicação por satélite que os russos não conseguem hackear, sim, isso lhe deu muito poder. E uma das cenas mais espantosas do livro é quando ele está em dúvida sobre o que fazer quando a Ucrânia planeja usar sua rede em um ataque à frota russa em Sebastopol, na Crimeia. O próprio Musk me perguntou: “Como eu me meti na guerra? Eu criei a Starlink para as pessoas verem filmes e jogarem videogames”. Ele então conversou com o governo e a inteligência americanos, e eles chegaram a um acordo: a Starlink vende os serviços de seus satélites para o governo americano, que tem a poder de controlar o uso. Ele constatou que tinha muito poder e encontrou um meio de deixar parte dele na mão do governo e de políticos eleitos.

(Atualização: depois que esta entrevista foi realizada, The Washington Post publicou, no dia 7, um trecho da biografia na qual é dito que Musk cortou a cobertura da rede que os ucranianos tinham na Crimeia para impedir que eles atacassem a frota russa em Sebastopol com drones. Depois da repercussão negativa da revelação, Isaacson informou, no Twitter, que Musk corrigiu a informação que havia dado para o livro: na verdade, a Starlink nunca teria oferecido cobertura para as forças ucranianas na Crimeia.)

Há alguns meses, Musk desafiou Mark Zuckerberg para uma luta de MMA, dentro de uma jaula. Não parece ser coisa séria. Mas se a luta acontecesse, em qual dos dois o senhor apostaria?

Isso é um exemplo do modo bobão de Musk, do humor juvenil de que já falei. Ri muito das pessoas que levaram isso a sério. Musk certa vez enfrentou um lutador de sumô. Ele até que se saiu bem, mas deslocou um disco na base do pescoço. Já passou por três operações para corrigir o problema e talvez ainda tenha de fazer mais uma. Não acredito que ele possa se meter em outra luta, e nem que ele realmente planeje fazer isso.

Bem, com base nessa lesão de Musk, podemos dizer então que, se a luta acontecesse, o senhor botaria dinheiro em Zuckerberg?

Ah, não, eu não vou dizer isso! Não quero ver publicada a aposta que eu faria em uma luta que eu não acredito que vá acontecer.