O STF retoma hoje o julgamento sobre a validade da autodeclaração de insuficiência financeira para as pessoas terem acesso à gratuidade na Justiça do Trabalho.
Com a reforma trabalhista de 2017, os requerentes passaram a pagar honorários de sucumbência e de perícia, o que desincentivou os processos.
Mas em 2021, o STF decidiu que aquilo era inconstitucional, e hoje, quem ganha até 40% do teto da Previdência tem o direito à isenção desses custos.
Agora, está em questão se a declaração de hipossuficiência financeira pode ser autodeclaratória. O Ministro Edson Fachin, relator da ação, já disse que sim, tendo como base o Código de Processo Civil.

Desde que o STF proferiu a decisão contrária à cobrança, o número de processos, que estava em queda desde a reforma, voltou a subir rapidamente.
Para o presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, não se deve usar o cerceamento à Justiça como instrumento para limitar as ações, como prevê a reforma de 2017.
“Impedir que alguém entre na Justiça é mascarar uma realidade que não corresponde àquilo que realmente deveria acontecer em termos constitucionais,” Vieira de Mello disse nesta entrevista ao Brazil Journal.
Mineiro de Belo Horizonte e com 39 anos de magistratura, Vieira de Mello assumiu a presidência do TST em setembro, com mandato até 2027.
Em quase uma hora de conversa, o ministro discorreu sobre as razões pelas quais é um crítico contundente da reforma trabalhista e explicitou suas preocupações com relação à ‘pejotização’ e à ‘uberização’ dos trabalhadores.
“Nós não vamos ter Previdência, nós não vamos ter nenhuma perspectiva de futuro, porque quem trabalha com o PJ não tem amanhã, tem hoje,” afirmou. “Não acredito em legislação flexível, acredito em mercado regulado.”
O STF vai decidir em breve sobre a questão da gratuidade nos processos trabalhistas – se os reclamantes devem pagar honorários advocatícios e dos peritos, como previu a reforma de 2017. Qual o entendimento do senhor sobre esse tema?
Não se faz redução de número de demanda sem que a gente entenda a premissa verdadeira. A premissa verdadeira não é simplesmente um aumento de demanda. Temos que discutir se há cumprimento ou não da legislação trabalhista.
Se houver cumprimento [da legislação], automaticamente você não tem demanda. A demanda decorre de não cumprimentos. E outra coisa: não se reduz demanda cerceando o acesso à Justiça.
Toda a doutrina processual diz que o primeiro direito, o direito dos direitos, é o direito ao acesso à Justiça. Se você não acessa a Justiça, você não garante a cidadania, não garante a perspectiva constitucional legal que o País oferece na sua soberania jurídica.
Impedir que alguém entre na Justiça é mascarar uma realidade que não corresponde àquilo que realmente deveria acontecer em termos constitucionais.
Mas nós temos também uma outra perspectiva, que é a da economia. Quando a economia vai bem, todos vão bem. Ninguém fica procurando a Justiça.
Então, querer resolver isso de uma forma artificial, ao meu juízo, isso vai trazer um outro problema social. Porque a Justiça do Trabalho tem uma natureza de proteção da segurança nacional. Ela evita o conflito social, evita a possibilidade de que haja uma ruptura entre capital e trabalho.
Não vou comentar a decisão do Supremo. Estou apenas apresentando o meu modo de ver essa questão.
Economistas e empresários dizem que o custo da alta litigiosidade impacta o potencial de crescimento. Além disso, especialistas apontam a falta de respeito à jurisprudência em algumas instâncias, o que eleva a incerteza jurídica. Como então preservar o princípio do acesso pleno à Justiça e, ao mesmo tempo, combater o número excessivo de processos e a incerteza jurídica?
Volto ao primeiro ponto. A questão do número de processos não está atrelada à insegurança jurídica. Não adianta estigmatizar a Justiça do Trabalho.
Com relação à jurisprudência, todos os tribunais superiores estão trabalhando para que haja uma uniformização em todo o País. Esse não é um problema exclusivo da Justiça do Trabalho. Estamos trabalhando duramente para continuar reafirmando a jurisprudência para estabilizar e dar segurança.
Um tribunal superior, hoje, não trabalha apenas com a jurisprudência pretérita – ou seja, resolvendo os casos passados. Quando ele normatiza com precedentes vinculantes, ele sinaliza prospectivamente o futuro, dizendo: ‘Olha, essa situação, juridicamente, é assim. Não adianta você entrar em um juízo, porque não vai ter sucesso.’
Então é todo um problema complexo, de toda a Justiça brasileira. Há cerca de 83 milhões de processos no País. Na Justiça do Trabalho, são 16 milhões.
O senhor afirma que leis não criam empregos – o que gera emprego é crescimento. Mas os economistas diriam que regras menos engessadas podem incentivar o crescimento. Ao mesmo tempo, vemos no Brasil os fenômenos da uberização e da pejotização – pessoas autônomas que, por opção ou necessidade, vivem sem a proteção das leis trabalhistas. Qual a sua análise a respeito desses pontos?
Vamos dividir em duas partes. A primeira delas diz respeito à natureza da legislação.
Com a CLT, tivemos no País períodos de grande crescimento econômico e baixo desemprego. Então, isso já é a prova cabal de que flexibilizar a legislação não gera melhor qualidade econômica.
De outro lado, uma legislação reguladora evita que o capital seja um capital selvagem e um capital que realmente não contribua para um mínimo de distribuição proporcional de riqueza.
Mesmo pela perspectiva liberal, precisamos ter uma distribuição razoável de renda entre aqueles que contribuem para a riqueza da nação.
Se tivermos uma legislação que, por exemplo, vai pejotizar, os grandes prejudicados serão os senhores empresários.
Nós não vamos ter Previdência, porque a Previdência é capitalizada pelos contratos de trabalho. O impacto nos últimos cinco anos está em torno de R$ 74 bilhões, e, no FGTS, em R$ 15 bilhões.
O FGTS financia toda a infraestrutura do País, ou seja, é necessário para o desenvolvimento empresarial. Financia também o Minha Casa Minha Vida e, portanto, diversas empresas.
E existe o efeito sobre o tecido social.
Qual seria?
O tecido social dá estabilidade à nação. Não é criando um aumento da concentração de renda que nós vamos ter um País estável. Tanto que, à medida que a desigualdade aumenta, o que aumenta? A violência.
Estamos levando o País a um Estado de empobrecimento e de insustentabilidade, porque não há perspectiva de futuro para a maior parte da população e isso vai causar uma desestabilização que nós não sabemos as consequências.
O País está em uma escalada vertiginosa de envelhecimento. Nós não vamos ter Previdência, nós não vamos ter nenhuma perspectiva de futuro, porque quem trabalha como PJ não tem amanhã, só tem hoje.
Não acredito em legislação flexível, acredito em mercado regulado. Defendo uma legislação que dê um mínimo de segurança para quem trabalha.
Hoje estamos vendo PJ em tudo: gari, trabalhador rural, caminhoneiro, médico, engenheiro, onde imaginar. Essas pessoas estão trabalhando subordinadamente sob contratos ditos de PJ – que, na verdade, juridicamente, são uma grande fraude, uma grande simulação.
Descapitalizar a Previdência é tragédia anunciada. Isso não funciona em lugar nenhum. E não vai funcionar aqui. Aqui vai aumentar a desigualdade.
O Supremo ainda vai apreciar a questão do vínculo empregatício dos trabalhadores em plataformas de transporte. Há também projetos sobre o tema no Congresso. Qual a sua avaliação?
As empresas mais sérias cumprem a lei, empregam pelo regime celetista – e elas funcionam muito bem.
A Justiça do Trabalho integra o Poder Judiciário. Nós não podemos fazer leis. Quando nos acusam de ativismo, estamos interpretando a lei. Nunca quisemos criar uma situação que a Constituição não prevê – legislar sobre uma forma nova de trabalho, isso não é nosso papel.
Na reforma trabalhista, a minha crítica fundamental é que os trabalhadores não foram ouvidos. Foi uma reforma bilateral, do Governo com o segmento empresarial. Houve uma reunião ou outra, mas não se mudou nada. Estava tudo pronto. O que eu digo, democraticamente, republicanamente, é: isso é uma forma de fazer lei?
A Justiça deve aplicar a lei que foi construída de forma republicana pelo Poder Legislativo, mas com a contribuição e o debate e o diálogo social com aqueles que são os interessados com o resultado e o proveito da lei para o País.
É como agora a própria lei sobre trabalhadores em plataformas. Claro que cada um de nós tem um modelo, um desenho na cabeça.
Tenho falado muito nisso em função de uma realidade que nós estamos vivendo há dez anos, mas essas pessoas estavam completamente invisibilizadas. Quem neste País se preocupou com isso?
Todo mundo ficou pedindo sua comida, seu Uber. Mas se o motorista bater o carro, ele não tem dia seguinte. Ficará com uma dívida que ele não vai pagar. E se um motoboy cair e morrer, deixar a família desamparada?
Precisamos ter uma legislação. Não precisa ser o vínculo da CLT, mas um vínculo especial que resolva essa questão, que dê uma segurança a essas pessoas. Eles não podem estar fora do Estado.
O PJ não engravida, o PJ não tem fim de semana, o PJ não tem horário de trabalho, PJ não tem nada. O que é que nós estamos dizendo e sinalizando para essas pessoas?
Sabe aquelas conquistas da Constituição de 1988? Não valem nada. Esse é um descompromisso constitucional muito grave, porque ele só poderia ser feito por uma Constituinte, ou por uma nova Constituição, e não por uma via transversa.
A consequência para o País vai ser um desastre. E uma hora isso vai fazer com que as pessoas se reúnam e digam que estão cansadas.
O senhor tem sido um crítico da remuneração de magistrados acima do teto. A questão dos adicionais poderá ser disciplinada na reforma administrativa, caso ela avance. O senhor acredita que, antes disso, o Judiciário vai se autorregular?
Não defendo que o juiz ganhe mal. Precisamos de um juiz bem pago, mas nós precisamos ter transparência.
Estive no CNJ [Conselho Nacional de Justiça], fui o conselheiro responsável pela magistratura e eu já defendia a transparência da remuneração do magistrado e procurei por todas as vias tentar saber como era composta a remuneração dos Tribunais de Justiça.
Os Tribunais são unidades autônomas, e surgem algumas discrepâncias de remuneração. Acabam sendo criadas gratificações que impactam a credibilidade do Judiciário, quando isso deveria ser resolvido por uma outra via, uma ação transparente de correção.
Cria-se uma dificuldade na equalização interna dentro do próprio Judiciário. Eu defendo a transparência. O juiz não deve fazer palestra remunerada, para não haver nenhuma forma de conflito de interesse.
A magistratura exige muito de todos nós. Estou magistrado há 39 anos. Vivi minha vida conforme aquilo que eu recebi ao longo da carreira. Tem hora que está muito bom, tem a hora que está muito ruim, e a coisa segue. Sempre me preocupo com a minha profissão.
Meu pai foi ministro nesta corte, tenho uma compreensão muito grave dessa profissão desde pequeno dentro da minha casa, e realmente acho que essa questão impacta a sociedade. O Judiciário está tratando disso internamente.
Defendo o rigor previsto no Código de Ética da Magistratura. Nossa vida tem que ser transparente. Não deve haver questionamento sobre as nossas condutas e nossas atitudes.











