No domingo passado, Deborah Colker estava em casa no Rio de Janeiro trocando a roupa do neto de 5 anos quando teve uma contratura na lombar. Sentiu um pinçamento do nada, levantou-se, saiu andando – e o choque só piorou.
Ligou para a sua médica e ouviu as recomendações: analgésico, antitérmico, bolsa de água quente e repouso para aliviar a dor. Acordou um pouco melhor na segunda, dirigiu seu carro do Jardim Botânico até a Glória – mais de 10 quilômetros – e, com uma toalha quente na lombar, deu expediente na sede de sua Deborah Colker Companhia de Dança. “Sou uma pessoa que desafia o corpo o tempo inteiro e, para o bailarino, disciplina é fundamental, não posso ficar parada dois, três dias,” disse a avó de 63 anos.
Deborah não tem mesmo tempo a perder. Seu novo espetáculo, Sagração, estreou em março no Rio, correu cinco cidades do Sul e chegou a São Paulo, no Teatro Santander, na sexta-feira.
Trata-se de uma versão brasileira do clássico A Sagração da Primavera, do compositor russo Igor Stravinsky (1882-1971), lançado em 1913, que subverteu os conceitos de música erudita pelos diferentes ritmos e melodias fragmentadas.
“Eu mexi em uma bíblia europeia, com responsabilidade, claro, fazendo do meu jeito e trouxe a Sagração para o Brasil primitivo, para mostrar as nossas origens, as florestas, os indígenas,” justifica. “Transformei bambus em canoas, ocas, florestas, flautas, criei imagens igual a uma criança, instintiva, de dentro para fora.”
Quinze bailarinos apresentam as coreografias no palco; entre eles, Ana Lívia Costa Santos interpreta uma Eva preta, em referência à força da mulher brasileira, que não precisa de Adão para se impor. Até porque, nas palavras de Deborah, Adão é um “babaca”, e ficou de fora da dramaturgia, construída junto com o rabino Nilton Bonder com total liberdade e sem se prender às versões do Antigo Testamento.
“A minha Eva começa o mundo através do pensamento, do livre arbítrio, subverte uma ordem divina, falam ‘não come a maçã!’ e ela come,” explica. “No meu roteiro, por exemplo, Abraão entra antes de Eva, e é ele quem anda sobre as águas.”
A Companhia de Dança Deborah Colker vem de dois espetáculos densos e apoiados firmemente na dramaturgia. Cão sem Plumas (2017), baseado no poema de João Cabral de Melo Neto, enfocou a batalha das populações ribeirinhas, e Cura (2021), criado para seu neto Theo, de 15 anos, que enfrenta uma mutação genética chamada epidermólise bolhosa, traça uma ponte entre a fé e a ciência.
Por isso, antes de definir o que seria Sagração, a coreógrafa tinha certeza de que queria ser comandada pela música novamente, e não pelas palavras – e isso tem a ver com o seu passado.
Deborah conhece música “desde pirralha”, como ela diz. Começou a estudar piano aos 7 anos e era considerada pelos professores uma promessa entre os jovens concertistas, quando, aos 17, deu uma virada na cabeça e largou o instrumento.
“Eu acho que tinha talento, facilidade, mas não me encontrava em uma arte tão solitária e fui buscar uma linguagem mais coletiva,” lembra. “Revi há pouco minha professora de piano, Salomea Gandelman, questionei se fiz certo e sabe o que ela me respondeu? ‘Você não largou a música, deixa disso, pensa no que você faz!’”
Nada mais grupal que a dança e, desde o começo, a futura coreógrafa tinha na cabeça a obra-prima de Stravinsky, embora soubesse que era trabalho para gente grande, como uma tese de doutorado, e deu tempo ao tempo.
Em 1994, fundou a própria companhia de dança contemporânea, um gênero pouco difundido três décadas atrás. “Eu dava aula para comprar pão, queijo, banana para o lanche dos bailarinos e, quando chegava às empresas para pedir patrocínio, ouvia os chefões gritando ‘tira essa maluca daí,’” conta a artista, que estreou em 1995 o espetáculo Velox, uma coreografia inspirada em alpinismo, lutas marciais e outras práticas esportivas.
Deborah tapava os ouvidos quando lhe diziam constantemente uma frase, fosse na família ou de possíveis investidores: “Minha filha, vai fazer outro tipo de dança”.
Ela atravessou com persistência vários Brasis, das relativas estabilidades de Fernando Henrique Cardoso e Lula às crises de Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro, sobrevivendo, claro, à pandemia do coronavírus.
“Eu tenho uma estrutura fixa de 35 profissionais para sustentar e, quando faço algo fora da companhia, é para mantê-la com as contas em dia,” diz. “Sei que, no Brasil, desistir de qualquer coisa é facinho, então encaro isso como uma saga.”
Em 2009, Deborah foi a primeira mulher a criar e dirigir um espetáculo do Cirque du Soleil, batizado de Ovo e visto no Brasil só em 2019.
“Esse trabalho ajudou a nossa sobrevivência por muito tempo, e como está em cartaz até hoje, às vezes entra um dinheiro,” revela.
O show de abertura dos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro, também idealizado por ela, deixou produtores italianos boquiabertos. “Você nasceu para isso, vem com a gente e vamos fazer só esse tipo de evento mundo afora,” teriam dito. Ela respondeu no ato, sem dar chance à dúvida. “Vocês estão enganados, eu não nasci para isso.”
Ainadamar, a primeira ópera dirigida por Deborah, escrita pelo argentino Osvaldo Golijov e lançada na Escócia, chega em nova versão ao Metropolitan de Nova York em outubro. É um passeio movido pelo flamenco através da vida e obra do poeta Federico García Lorca (1898-1936), cuja militância política e sexualidade levaram à sua execução na Guerra Civil Espanhola.
Há três semanas, a artista foi aos Estados Unidos para a audição dos bailarinos e do coro, e teve uma surpresa: a assinatura de um novo contrato para aquela que será a sua segunda ópera, O Último Sonho de Frida e Diego, inspirada no amor dos pintores mexicanos Frida Kahlo e Diego Rivera.
“É incrível e assustador fazer um trabalho em cima de Frida e Diego, e mais ainda esse novo contrato, porque eles assinaram comigo sem saber se o resultado de Ainadamar será bem-sucedido”, surpreende-se ela, que volta a Nova York em setembro para ficar até meados de outubro – enquanto Sagração viaja o Brasil.
A fama de durona, superexigente e até tirana persegue a artista, mas aí ela volta para aquela conversa da necessidade de reforçar uma certa rigidez. “Não existe dança sem disciplina, e o bailarino deve entender que sua vida útil é curta, não dá para perder tempo,” sublinha.
Deborah reforça a importância de seu time fazer aulas junto todos os dias – balé, jazz, dança moderna, street dance –, embora não deixe de olhar para a individualidade de cada um.
Para ela, é fundamental encontrar a habilidade específica de profissionais tão diferentes, entre seus 20 e 34 anos, e lapidá-la em nome de um resultado comum.
“Eu preciso de algo atlético, vigoroso, mas também de maturidade, da profundidade que só o tempo dá, e faço questão que eles se desenvolvam,” diz. “Para a garotada ativista eu não tenho paciência: são os filhos da internet, não têm noção de memória, de histórico e querem ditar verdades, mesmo a minha companhia tendo mais tempo de vida que eles.”