Na noite de 9 de novembro de 1972, Torquato Neto comemorou seu 28º aniversário. Despediu-se dos amigos, foi para casa, esperou a mulher adormecer e, por volta das quatro e meia da manhã, pegou um lençol, entrou no banheiro, vedou todas as aberturas e ligou o gás.
Deixou apenas um bilhete em que parafraseava um poema de Carlos Drummond de Andrade, definindo-se como alguém que foi visitado por um “anjo torto” e que deveria “desafinar o coro dos contentes”. Pedia prosaicamente que não fizessem barulho para que o filho Thiago não fosse acordado.
O gesto trágico encerrava a curta e prolífica carreira de um dos mais brilhantes poetas da segunda metade do século passado: ao todo foram cerca de 30 letras de música (entre elas Dente por Dente, em parceria com Jards Macalé, Mamãe Coragem, com Caetano Veloso, Louvação, com Gilberto Gil, e Pra Dizer Adeus, com Edu Lobo).
Torquato deixou ainda outros tantos escritos esparsos sob a forma de poema, roteiros e manifestos, e teve uma breve militância no jornalismo diário, através da coluna Geleia Geral, publicada no jornal carioca Última Hora no início dos anos 70.
Pelo imprevisto de sua morte, seu testamento intelectual só chegou às livrarias uma década depois, com a publicação em 1982 de Os Últimos Dias de Paupéria (Editora Max Limonad), obra que havia sido organizada por Waly Salomão (outro poeta que completaria 80 anos recentemente) e pela viúva de Torquato, Ana Maria Duarte.
O livro rapidamente se esgotou, tornou-se uma raridade e hoje alcança preços altíssimos em sebos. Outra tentativa de fazer Torquato Neto reviver nas páginas literárias ocorreu em 2004, com a publicação de dois volumes: Torquatália – Do Lado de Dentro e Torquatália – Geléia Geral, este, uma edição revista e aumentada da obra de 1982.
Nela há poemas, canções, diários de Torquato e outros documentos inéditos, como as cartas trocadas entre ele e o artista plástico Hélio Oiticica, seu grande amigo e com quem conviveu em longas temporadas no Rio e em Nova York.
Os dois volumes somam quase 800 páginas. Entre os achados, os relatos mais reveladores são os poemas da adolescência guardados na casa dos pais em Teresina, que, além de antecipatórios, mostram a afinidade do poeta com escritores de gerações passadas; em especial Ezra Pound, Cruz e Sousa, Castro Alves e o próprio Drummond.
Piauiense, Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu em novembro de 1944, filho de um promotor de Justiça e de uma dona de casa, e desde criança foi um personagem atormentado.
O garoto tímido, filho único de uma família de Teresina, desde cedo gostava de ler Castro Alves, Olavo Bilac, Fagundes Varela e Gonçalves Dias. Aos 15, pediu ao pai que o autorizasse a concluir os estudos na Bahia e, com a mudança para Salvador, viveu o período da avant-garde baiana patrocinada pelo reitor da Universidade da Bahia, Edgard Santos.
Lá conheceu Gilberto Gil e se aproximou de outros tropicalistas, como Capinam e Caetano Veloso – que anos depois dedicaria ao pai de Torquato a canção Cajuína, aquela que pergunta “existirmos a que será que se destina?”, fala da sina do “menino infeliz” e conclui dizendo que a “matéria-vida era tão fina”.
Também no período baiano, Torquato ficou amigo de Glauber Rocha e do jornalista Luiz Carlos Maciel. Com este grupo, desceu para o Rio e passou a colaborar em jornais e revistas.
Incentivador de tudo que pudesse ser classificado como marginal, Torquato – com exceção da Última Hora – quase sempre colaborou com jornais nanicos de existência efêmera, como Presença e Flor do Mal.
Agitador, também foi o responsável por “manifestos tropicalistas”, entre eles o roteiro do programa de televisão Vida, Paixão e Banana do Tropicalismo, que deveria ser o primeiro da história do movimento, em 1968.
A partir dali, tudo mudou – para pior.
Quando a barra começou a pesar, com a decretação do AI-5 em dezembro de 1968, Torquato estava em um cargueiro dos correios britânicos, a caminho de Londres.
“Vou embora porque alguma coisa vai explodir por aqui,” profetizou aos amigos que o levaram ao porto. Na temporada europeia, dividiu-se entre a Inglaterra e a França, mas quando retornou ao Brasil no começo dos anos 70 não se sentia muito melhor.
Torquato havia rompido com os amigos tropicalistas, em especial com Caetano e Gil, e também com os do cinema novo. Declarava se sentir mais deprimido e – por vontade própria – se internou no sanatório do Engenho de Dentro, sendo tratado com doses fortes de Mutabon D., um antidrepressivo.
Numa de suas últimas colunas falava de Luiz Melodia, um artista que então surgia, e elogiava a música Farrapo Humano, aquela que diz: “Eu choro tanto escondo e não digo/Viro farrapo tento suicídio”.
Pelos últimos anos, as internações em sanatórios e os problemas com o álcool foram num crescendo, e isso passou a se refletir em suas colunas. Foi na Geleia Geral que Torquato, já um letrista respeitado, passou a alimentar polêmicas e provocar desafetos – e também a se isolar.
Na última coluna, publicada em março de 1972, deixava de novo antever sua tendência suicida ao falar do sentimento de morrer sozinho, “na pior” e “bem odiado”.
Ou, como havia antecipado em Pra Dizer Adeus, “Vou pra não voltar/E onde quer que eu vá/Sei que eu vou sozinho”.