Em meio a tanta controvérsia em torno da Covid-19, talvez seja útil falar um pouco das minhas poucas certezas e muitas dúvidas.
É difícil, no atual ambiente, tratar de questões. As pessoas, justificadamente, querem respostas – simples, objetivas e, quem sabe, corretas. Infelizmente, na vida real, raras são as grandes crises em que as respostas são fáceis.
· Por que razão a expressão da doença (COVID-19) causada pelo virus (SARS-CoV-2) tem uma variação tão grande entre indivíduos? Os casos de Covid-19 tem um nível de heterogeneidade totalmente inusual, variando do completo assintomático a um colapso respiratório fulminante em determinados pacientes. Médicos tem discutido reservadamente esse assunto: isto é raro, particularmente em doenças infecciosas. Claro, há uma serie de fatores explicativos – em especial idade, pré-existência de co-morbidades e reserva cardiopulmonar, mas mesmo “controlando para estes fatores” (no jargão estatístico) a variação residual é extrema. Ouvi uma hipótese intrigante de um médico dos EUA: a “carga de inoculação” pode ser um determinante na expressão da doença. O Dr. Li Wenliang, médico chinês que deu o primeiro alerta do Corona ao mundo, faleceu aos 34 anos, sem – ao que consta – co-morbidades aparentes. Em outras doenças infecciosas, como a Hepatite B, a relação entre exposição e severidade da doença parece ter sido estabelecida. Se essa hipótese for confirmada (i.e. o nível de exposição ao vírus afeta a expressâo da doença), as implicações do ponto de vista de política pública são relevantes. Restringir qualquer exposição é muito mais difícil do que impedir uma carga viral acentuada, e essa passaria a ser a prioridade.
· Ambiente e umidade tem efeito relevante? Há muitas “afirmações definitivas” a respeito do tema. Na verdade ainda não sabemos. A taxa da infeção da Islândia parece ser 22 vezes mais alta do que a Austrália, por exemplo. A maioria dos vírus causadores de doença respiratória tem sazonalidade, mas esta sazonalidade tem relação com fatores tanto de ambiente quanto de comportamento. Um estudo recente estipulou que a cada grau Celsius de aumento de temperatura e 1% de aumento na umidade relativa do ar, o fator de replicação da doença cai respectivamente 0.0224 e 0.0383. Traduzido em miúdos e de forma muito simplificada, cada doente no Rio de Janeiro, que nessa época do ano é cerca de 20 graus mais quente e 30% mais úmido do que Milão, infectaria em média cerca de 1 pessoa a menos do que alguém na cidade italiana. Ainda que esse efeito seja real, tempertura e umidade claramente não são a “bala de prata” que resolverão o problema da contenção da infecção.
· Qual a massa crítica da população deve ser infectada para que a transmissão da doença seja interrompida (“herd immunity”)? A lógica da resposta inicial britânica à epidemia está ligada à “imunidade de rebanho” – uma vez que uma quantidade suficiente de pessoas foi exposta à doença, a imunidade dos infectados impede a transmissão do vírus. Infecte os jovens (baixa letalidade) rapidamente, proteja os idosos (alta letalidade) e – uma vez atingido o nível crítico de proteção – retorne todos à vida normal. A premissa aqui é que, uma vez infectado, o paciente desenvolve uma reposta imune que impede – ao menos por um prazo – re-infecção. Parece uma premissa razoável, mas infelizmente ainda não comprovada e supreendentemente controversa. A chave do mistério está em Wuhan, na Lombardia ou – dentro em pouco, em Nova Iorque. Precisamos entender qual percentual da população desenvolveu imunidade à doença nessas áreas em que a exposição foi massiva. E qual a real extensão de infectados assintomáticos. Testes sorológicos nas áreas mais fortemente afetadas nos ajudarão a compreender isto melhor e, eventualmente, ajustar o curso das políticas. Para minha total surpresa, ouvi na última semana – de um médico auxiliando a OMS na frente de batalha – que a suspeita é de uma baixa taxa de imunidade causada pelo virus. Se de fato isto for verdade (espero que não, e os primeiros relatos vem sendo promissores no sentido de que há resposta imune relevante causada pela infecção), as perspectivas da estratégia do “herd immunitiy” adotada por Reino Unido (em um primeiro momento) e Suécia são péssimas.
· Qual a “relação de troca” entre vidas salvas pela quarentena e “vidas perdidas” para a fome e o desemprego? Um estudo recente compreendendo os anos de 2012-2017, publicado na Lancet Global Health tenta responder de forma tentativa à questão e calcula 2 mortes adultas adicionais por 100.000 habitantes para cada 1% de desemprego adicional. Assumindo que esta estimativa seja algo precisa – na ausência de políticas compensatórias – um aumento na taxa de desemprego no Brasil dos atuais 12% para 20% causaria ao menos 33 mil mortes. Uma queda tão brusca e traumática quanto a que estamos vivendo provavelmente teria impactos ainda piores do que os da estimativa acima. Países pobres precisam sopesar com cuidado o efeito dos lockdowns – e adotá-los de forma coordenada com políticas agudas de amortecimento do impacto econômico.
Então o que fazer? A necessidade de estabelecer políticas públicas agora, sob condições de incerteza, infelizmente nos impede de “esperar os dados”. Em primeiro lugar, é importante entender a “quarentena”. O fator de reprodução da doença (“R0”) foi estimado na China em torno de 2.7. A essas alturas, todos já sabem que esse número quer dizer que cada pessoa infectada contaminará, em média, 2.7 outras pessoas durante seu ciclo infeccioso. E a razão pela qual o crescimento da doença é tão explosivo tem a ver com a natureza exponencial de sua replicação. Mas vale entender esse número um pouco melhor. Um bom modelo mental para entender o tal “R0” de 2.7 é que ele equivale a:
12 contatos por pessoa/dia x 3% probabilidade de transmissão por contato x 8 dias de transmissibilidade por pessoa infectada
Para combater a infecção, só podemos mexer nos dois primeiros fatores – diminuindo o número de contatos por pessoa/dia (distanciamento social) ou diminuindo a probabilidade de transmissão (higiene pessoal, máscaras etc). O primeiro fator é o mais potente. Países só tem dois caminhos para isso: um aumento brutal de testes ou quarentena. A Coréia fez um esforço enorme de testes – 20 pessoas testadas para cada caso confirmado. A Itália só teve infra-estrutura para testar 4 casos a cada confirmação. Quem testa muito consegue isolar os contaminados e evitar um lockdown. Quem não se preparou para isso, infelizmente, tem apenas duas opções: quarentenas (nos mais variados formatos) ou “abandono de causa”.
O Brasil não pode e não deve fugir à luta. Acho difícil evitar quarentenas sucessivas das regiões afetadas. A experiência internacional mostra que uma quarentena efetiva de 30 dias consegue “achatar” a curva de progressão da doença e comprar tempo precioso para o sistema de saúde se preparar. A organização da quarentena deve manter indústrias e serviços essenciais operando e ter especial cuidado com temas de abstecimento. Fechar estradas e infra-estrutura essencial para caminhões é uma forma garantida de atrapalhar a economia e a logística de suprimento do próprio sistema de saúde. Tempo suficiente para escalar hospitais de retaguarda, leitos e staff adicionais minimamente treinados para operar ventilação mecânica. Especialistas estão otimistas quanto ao desenvolvimento – nos próximos 3 ou 4 meses – de tramentos anti-virais (há diversos trials em curso).
Enquanto isso, precisamos de políticas compensatórias extremamente ágeis. As parcelas mais vulneráveis da população já estão sendo atingidas pela fome e doença, como resultado da parada repentina da atividade econômica. O Covid-19 para essas pessoas ainda não chegou, mas a letalidade já bate à porta. O governo tem um Cadastro Único com 30 milhões de famílias de renda per capta inferior a ½ salário mínimo. Estes já estão sofrendo. Do outro lado, grande parte das empresas e negócios não foram desenhados para ficar um ou dois meses sem nenhuma receita. A destruição de valor está sendo brutal. Desonerações tributárias temporárias (6 meses) que aliviem o custo fixo das empresas, como por exemplo a suspensão de cobrança de todos os tributos sobre folha seria um bom começo.
Infelizmente não teremos tempo de desenhar políticas perfeitas. Haverá ineficiência, abuso, erros. Mas o tempo é fundamental. Atuar agora para amortecer o impacto da paralisação da atividade econômica é a melhor forma de poupar vidas. Passada a crise, teremos de recomeçar o árduo trabalho de consolidação fiscal.
Espero que o façamos com o sentimento renovado de que, mesmo em um dos países mais desiguais do mundo, a solidariedade não sumiu da política pública.
Daniel Goldberg é sócio-diretor da gestora de investimentos Farallon Latin America. Foi presidente do banco Morgan Stanley e Secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça.