Falta menos de uma hora e meia para o Jornal da Band entrar no ar quando Ricardo Boechat chega em mangas de camisa, gravata no braço e calça risca de giz, fazendo piada com os colegas.
O dia foi de alagamentos, São Paulo em estado de alerta, e o âncora mais combativo e mais desbocado do jornalismo brasileiro está uma hora atrasado para a nossa entrevista, mas não parece aflito.
Um colega passa pela sua mesa com a grande notícia do dia: será pai de trigêmeos — e já tem nove. “Isso me lembra meu pai quando saiu da cadeia em 64: desempregado e já com cinco filhos. E recebeu de minha mãe, que já estava quase parindo, uma boa e uma má notícia. A boa era que a gravidez corria bem, a outra é que eram gêmeos.”
Daí em diante, emendamos uma série de reminiscências, partindo da infância em Buenos Aires, onde nasceu, e Uruguai, países onde o pai, que era professor de Português, serviu como espécie de adido cultural a convite do amigo e diplomata Antônio Houaiss.
Do pai, Dalton, que depois se tornaria relações públicas da Petrobras, Boechat herdou o dom de escrever. Na falta de outra qualificação, foi parar na redação do extinto Diário de Notícias. Seu grande mentor foi o lendário Ibrahim Sued, que revolucionou o colunismo social ao mesclar, com uma linguagem franca e agressiva, as fofocas da alta sociedade com furos e bastidores da política e da economia. Boechat passou 14 anos como repórter de Ibrahim.
“Naquelas rodas, viagens e festas que Ibrahim frequentava eu não podia estar. Morava de aluguel em Niterói, tive três filhos logo de cara. Mas por mais que não frequentasse, esses feixes de luz chegavam pra mim também. Você ligava pro Embaixador, para a autoridade. Era o operário do negócio. Isso me colocava no radar das pessoas.”
“Mas nunca deixei de ter um certo distanciamento. Brincava com os amigos do Partido Comunista de Niterói (ao qual era filiado) que estava ‘infiltrado nas linhas inimigas’.” Ibrahim era simpático aos militares.
Nos anos 90, Boechat já era um dos jornalistas mais influentes do país, com dois prêmios Esso (o terceiro viria em 2001). Era uma estrela em ascensão nas Organizações Globo — tinha uma coluna no jornal e uma entrada no Bom Dia Brasil — até virar notícia em meio a uma disputa entre Daniel Dantas e Nelson Tanure.Grampeado, teve sua intimidade exposta nas páginas da Veja.
“Foi terrível, traumático, me abalou muito”, diz. “Meu trabalho era muito bom, minha coluna tinha o melhor faturamento, dava um puta Ibope, a Bloomberg só fechava o noticiário da manhã depois que eu aparecia no jornal. De repente você descobre que nada disso tem valor.”
Faltam 50 minutos para entrar no ar. Boechat segue narrando os episódios do passado enquanto Vavá, seu maquiador, passa batom: “Se não passar fico com a boca da Angelina Jolie”.
“De uma hora para outra, os bajuladores de plantão somem”, emenda, entre uma pincelada e outra de base na careca, “e você se dá conta de como eram vazias e o quanto é errado hiper valorizar a própria importância.”
Mas essa consciência também vem com a idade. “Estou com quase setentinha. Você fica mais solto para não se trair. Pois a gente se trai o tempo todo. Faz uma concessãozinha aqui, outra ali. Tem sempre aquela cota que não está alinhada com o que há de melhor em você. E talvez seja o seu ‘eu’ verdadeiro e você ali lutando para por na linha.”
Refletimos sobre a recente saída de William Waack da Globo. “No caso do Waack tiveram a dignidade mínima de fazer uma negociação, emitir nota. Fui rifado de domingo pra segunda e foda-se os 30 anos que eu estava lá dentro.”
Ele diz que respeita e se solidariza com a reação contundente contra manifestações racistas, mas lamenta a falta de ponderação da emissora. “Poderiam ter enquadrado o cara, fazer ele se retratar, doar 10 salários, tirá-lo do foco. Quero acreditar que as pessoas podem melhorar depois dos erros.”
Boechat refez a vida em São Paulo, onde trabalha há 14 anos no Grupo Bandeirantes e hoje vive seu segundo auge de popularidade. Seu programa matinal na BandNewsFM atrai 117 mil ouvintes por minuto (a líder Jovem Pan tem 160 mil). Na TV, a audiência oscila bastante, mas no final do ano passado o Jornal da Band estava na briga pela vice liderança com Record e SBT. “A vida foi generosa comigo.”
A despeito de um vocabulário às vezes impróprio para menores, seu fã clube inclui até crianças. No momento mais fofo da carreira, emprestou sua voz ao personagem ‘Boi Chá’, um âncora de TV na versão brasileira de Zootopia, a animação da Disney amada por muitos adultos.
“Hoje tenho consciência de que estou no auge da visibilidade do meu trabalho. Nunca estive tão exposto, até por conta dessas mídias.”
Boechat virou sensação da molecada há uns três anos. Criou um perfil no Facebook no qual postava fotos fazendo selfies em banheiro de avião, ou tomando vacina de sutiã rosa. Virou lista no Buzzfeed [‘o âncora mais doido do jornalismo brasileiro‘], meme e ‘trending topics’ (quando mandou o pastor Silas Malafaia ‘procurar uma rola’).
Estava no auge da superexposição quando foi tomado por uma forte depressão. Em meados de 2015, faltando dois minutos para entrar no ar na BandNews FM, Boechat surtou. Refugiou-se no camarim e desabou no choro. Ao voltar da licença menos de 20 dias depois, deu um depoimento raro e emocionante sobre o episódio. “Achei que tinha que dar satisfação. E me dei conta de forma muito mais consistente da dimensão do problema, que era tratado de forma muito clandestina.”
Hoje está mais comedido nas redes. Posts pessoais são menos frequentes. Diz que se sente bem, não toma mais remédios. “Mas diria que algo como 25% de sei lá o que de mim foi embora. Pra sempre.”
Para manter o pé no chão, pratica um exercício diário de troca com o público. Quando não está no ar, dedica todo o tempo a responder mensagens de ouvintes e telespectadores. São dezenas por dia, nem sempre gentis.
Para Boechat, o jornalista e os veículos que não se colocarem a serviço do leitor serão varridos do mapa.
“A aura autoconferida de ‘heróis’ do jornalismo tem uma razão histórica, do repórter Esso: “Pararrarapapan. Está no arr o repórrter Essso, testemunha ocularr da história”. Não somos testemunhas de porra nenhuma. Quantas vezes você presenciou um assassinato, um avião cair ou um trem bater de frente? Ainda bem que nada disso. Quem viu foi o cara da esquina, que tinha a informação e não sabia o que fazer com isso. Mas agora ele sabe porque esse cara tem uma merda dessa na mão,” diz, levantando o celular.
Boechat não vê crise no meio jornalístico, mas sim excesso de notícias que não interessam.
“O problema não são as notícias falsas, mas as notícias de merda. Todo dia tem promessa do Temer e damos manchete pra ela. Ontem no Fórum Mundial da Água, Temer prometeu um grande programa de saneamento nacional. Isso é ‘fuck news’. Ele não vai cumprir, a gente sabe que não vai acontecer. Um cara exaurido politicamente, a seis, sete meses de terminar o governo. Que merda é essa?”
São 18h40 e a tensão cresce no entorno da baia de trabalho de Boechat. Editores e produtores do telejornal preparam as chamadas que serão lidas pelo âncora e sua companheira de bancada Paloma Tocci. “Leu a escalada?”, “Li” (noto que ele nem ligou o computador). “Nana!” grita para a assistente, “larga essa porra e imprime a escalada pra mim.”
Um colega sai em sua ajuda, lendo alto uma chamada: “O governador Geraldo Alckmin foi escolhido pelo PSDB como o nome que vai conduzir o país rumo ao Século 22”. Atento, não cai na pegadinha. “Vai tomar no seu #$@%. Escroto.”
Boechat costuma ser aplaudido e vaiado tanto pela esquerda quanto pela direita. Contabiliza mais de 130 processos contra si. “Perdi um pro Requião, mas no final teve uma decisão que me favoreceu na aplicação da pena. E teve um outro que mereci perder. Uma nota errada, dada por um membro da minha equipe. Repórter bancou, banquei ele. Mais na frente descobri que não se sustentava. Me fudi merecidamente.”
Faltam 15 minutos para entrar no ar e Boechat precisa de um café e um cigarro. No fumódromo, falamos da eleição.
“Difícil fazer qualquer previsão. Mas o meu sentimento é de que vamos ter uma eleição histórica, como jamais tivemos, nem mesmo depois da ditadura. Deixamos de ser só o país do carnaval e do futebol e de ter inveja dos vizinhos mais politizados. Esta é a primeira eleição com uma população realmente interessada em política, discutindo. Em todas as classes sociais. E com a consciência de massa de que é possível botar na cadeia o deputado mais poderoso, o empreiteiro mais poderoso, o governador mais promissor, e com o presidente mais popular que poderá ir pra cadeia. E isso é tudo verdade. Não é que a Polícia Federal ou o juiz se encheram de brio. A sociedade mudou. Não fosse isso, outras operações teriam prosperado no passado. Mais do que um presidente novo — do ponto de vista do personagem deve ser mais do mesmo — quero crer que isso vai se refletir em um Congresso melhor. Acho pouco provável Bolsonaro ganhar. Se tiver um no centro que se destaque, arrasta o resto. E até um moderado de esquerda pode levar.”
Apaga o cigarro e corre pro estúdio. A realidade brasileira, confusa e desconcertante, espera seu âncora.