Junho de 2013. Um protesto contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo de repente se alastrou pelo país. Em Brasília, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Manaus e em outras centenas de cidades brasileiras, milhões de pessoas ganharam as ruas. Não havia bandeiras claras, mas davam voz a uma indignação antiga e sufocada com o sistema político.

É a esse evento inaudito que se refere o título do recém-lançado livro-reportagem da jornalista Consuelo Dieguez, O Ovo da Serpente (Companhia das Letras; 328 páginas). A serpente gestada nas ruas seria a nova direita brasileira, que conduziu ao Palácio do Planalto um deputado do baixo clero cuja carreira política começou pela defesa de reivindicações corporativas das forças armadas.

“O levante de 2013 marcou o fim da hegemonia da esquerda nos movimentos sociais. A partir dali, a direita, que se mantinha encolhida desde a redemocratização, entrou escancaradamente em cena”, diz a autora.

O livro é uma crônica minuciosa da emergência de uma direita orgulhosa em proclamar seu nome – e que o faz de forma estridente, às vezes agressiva. Curiosamente, o personagem principal dessa história é Jair Bolsonaro, que teve participação nula nos protestos de 2013. Nos anos seguintes, porém, ele consolidou uma base de apoiadores que dispensam os canais convencionais da comunicação política, compartilhando mensagens pelas mídias sociais – sobretudo, pelo WhatsApp.

Como repórter da revista piauí, Consuelo Dieguez acompanhou a ascensão de Bolsonaro e entrevistou muitos de seus apoiadores. Seu livro começa reconstituindo, em detalhes, o momento mais dramático da campanha eleitoral de 2018: o atentado sofrido por Bolsonaro em Juiz de Fora.

Depois dessa abertura de impacto, a narrativa retrocede a 2013 e a partir daí segue, com algumas liberdades, a cronologia dos eventos. A autora documenta passo a passo como Bolsonaro e um punhado de colaboradores de primeira hora – entre eles, o advogado Gustavo Bebianno, o empresário Paulo Marinho e seu filho André, e o marqueteiro Marcos Carvalho, todos escanteados depois que Bolsonaro conquistou o Planalto – foram criando pontes com os segmentos que comporiam suas bases eleitorais: os evangélicos, os militares, o empresariado e a Faria Lima (estes seduzidos por Paulo Guedes), e o agronegócio.

Há um filme de Ingmar Bergman também intitulado O Ovo da Serpente que se passa na Alemanha de 1920 e já aponta os primeiros sinais da ascensão do nazismo. Como este fato pode dar a impressão errada sobre um livro com o mesmo título, é bom enfatizar esse ponto: Consuelo Dieguez não faz nem sugere qualquer paralelo entre bolsonarismo e nazismo.

A narrativa de O Ovo da Serpente é sóbria, ponderada, ainda que os personagens e os fatos de que o livro trata convidem à exaltação. Ao longo do livro, transparece um nítido esforço da autora para entender as razões que fazem com que diferentes grupos se sintam representados por Bolsonaro.

A obra põe a nu a dificuldade que as elites progressistas tiveram – e talvez ainda tenham – para compreender o fenômeno representado pela nova direita e por seu “mito”.

Neste ponto, Consuelo não se abstém de criticar seus colegas – em particular os jornalistas da Globo News e do programa Roda Vida, da TV Cultura, que, ao entrevistar Bolsonaro, insistiram em perguntas sobre o apoio do então candidato à ditadura militar, como se suas posições a favor do arbítrio já não fossem desde sempre bem conhecidas (e aprovadas por parte de seu eleitorado). Com facilidade, Bolsonaro deu a volta nos entrevistadores.

O Ovo da Serpente traz saborosas histórias dos bastidores da campanha presidencial – como a surpresa dos colaboradores de Bolsonaro ao descobrir que ele usa laquê para impedir que os cabelos finos caiam sobre o rosto, ou o constrangedor momento em que Michelle Bolsonaro, abalada pela notícia de que seu marido fora esfaqueado em Juiz de Fora, pediu a André Marinho que fizesse uma de suas conhecidas imitações da fala peculiar de Bolsonaro, pois isso iria acalmá-la.

Embora O Ovo da Serpente faça alusões frequentes a fatos do governo Bolsonaro, a história que Consuelo Dieguez deseja contar se encerra efetivamente no segundo turno da eleição de 2018, em 28 de outubro de 2018. Na sala de sua casa, na Barra da Tijuca, Bolsonaro acompanhou a apuração pela TV. A cena que se segue ao anúncio de sua vitória é estranha: o futuro presidente não se alegra, não se exalta, não comemora.

Fica no ar um elemento de estranheza na personalidade de Bolsonaro, ou talvez até a sugestão de que ele guarda complexidades que sua figura pública não permite suspeitar. Mas a psicologia do presidente não é o tema de Consuelo Dieguez.

Seu livro é uma contribuição jornalística substantiva para a compreensão de uma corrente política que emergiu com força imprevista em 2018 – e que por um bom tempo deve continuar participando do cenário público nacional, independente do resultado eleitoral do próximo domingo.