RONGCHENG, China — Vim para a China vivenciar uma experiência diferente, estudar mandarim por um mês como “filho adotivo” na casa de uma família de classe média que pouco fala inglês. 
A experiência está sendo fantástica, em todos sentidos. Na descrição de minha filha — para quem narrei detalhes e mandei algumas fotos — uma “verdadeira aventura.”  

Não vou descrever detalhes agora, apenas observar que os chineses normalmente não usam sabão ao lavar as mãos, nem toalha para secar, e compartilham a comida do mesmo prato.

 
Vou escrever sobre o vírus — o que estou vivenciando, vendo e ouvindo, incluindo comentários de chineses que acredito não estejam saindo na imprensa.
No início dessa semana, não havia passagens de Shanghai para Rongcheng, onde viemos passar o Ano Novo Chinês. Por isso tivemos que pegar um trem para Jinan, uma cidade mais distante, lá trocarmos de estação e depois outro trem para cá, num total de 17 horas de viagem.  
 
Mas em quatro dias, tudo mudou.  

Ontem pela manhã, mais da metade das pessoas estava usando máscara nos metrôs. Na escola alguns professores e alunos usavam. O desafio era no almoço: não dá pra comer de máscara. No final de tarde, no metrô e na estação de trem, mais de 90% das pessoas não tiravam a máscara para nada.

 
Achei que haveria mais gente, afinal, eram esperadas 3 bilhões de viagens entre trem e avião, nesses dias. Cada trecho conta como uma viagem. Uma ida trocando de trem no trajeto é contada como duas viagens. Mesmo assim, 3 bilhões, só no Ano Novo Chinês, e as estações deveriam estar mais lotadas. As estações são enormes, e a organização, militar, mas isso explicaria tudo? A bordo do trem notei que havia algo mais.
 
Milhões — ou centenas de milhões — cancelaram seus planos. Era tarde para mudar os meus. Estava por um caminho tortuoso indo com meu “irmão” adotivo passar o Ano Novo com sua avó, tios e primo.

Ao longo da viagem fui sendo alimentado com informações que chegavam a cada instante pelo meu “irmão” chinês e outras fontes. “Fecharam a Disney em Shanghai”; “a cidade de Wuhan está isolada, ninguém entra ninguém sai”; “o vírus chegou em vários países, e em todos os estados chineses, exceto (por ora?) no Tibet”; “todos os pontos turísticos em Shanghai estão fechados” … 

Enquanto escrevo, assisto com minha família chinesa o maior programa de televisão do mundo. Mais de um bilhão de chineses assistem todos os anos o programa do Ano Novo. Apesar de meticulosamente preparado e ensaiado com meses de antecedência, no de hoje inseriram algumas declarações improvisadas, emocionando a todos com cenas tocantes e dizendo que vão isolar o vírus, encontrar a cura, e vencê-lo. 

Mas o chefe do país aqui (não vou citar o nome para não correr o risco de ser bloq…) está sendo criticado. Mais cedo fez um discurso de Ano Novo e ignorou o vírus. Pior, fez o discurso em praça pública, atraindo uma grande concentração de pessoas. Ofereceu muito pouca ajuda para Wuhan. Dizem as más línguas que o governo federal não se entende bem com o de Wuhan.  Até aqui tem disso, e como sempre, quem paga a conta?

O governo de Wuhan também não está isento de críticas. Pelo contrário, demorou para agir e dizem que não está fazendo o suficiente. 

 
Recebemos mensagens por WeChat com cenas que a TV não mostra. Vemos cenas de hospitais mais lotados que metrô em horário de pico, outras com cadáveres ao lado de pacientes sem leito.
 
O governo de Wuhan num primeiro momento disse que era apenas um rumor que os preços dos alimentos estavam subindo e poderia faltar. Quatro horas mais tarde, reconhece e diz que vai punir as empresas que aumentaram os preços. Mas não resolveu o problema, inclusive da falta de máscaras. Parece que as pessoas de Shanghai foram mais precavidas e acabaram com o estoque de máscaras da China. Tenho a minha que recebi na escola em Shanghai, mas meu “tio” aqui em Rongcheng não encontra uma para comprar, e foi me receber na estação de trem. 
 
É preocupante o que bilhões de pequenos descuidos como este poderão significar mais adiante com um vírus que incuba por duas semanas.
    
Mas por outro lado, vemos hospitais sendo montados em apenas horas numa verdadeira operação de guerra. Não sei se algum país grande além do Japão seria capaz de fazer melhor nessas circunstâncias.

Por falar em Japão, enquanto na China faltam máscaras e as fábricas não aumentaram a produção (e ainda aumentaram os preços), o Japão aumentou a produção de máscaras e baixou o preço. Adicionalmente, estão imprimindo “Go China” nas máscaras.  Minha família adotiva chinesa se emocionou com esse gesto.

Enquanto escrevo os números crescem, tanto de infectados e mortos quanto a extensão geográfica alcançada pelo vírus.  Até agora apenas idosos mais fracos morreram, mas com um vírus de cura desconhecida e ainda mutante como este, tudo pode acontecer.

Agora há pouco, todas as celebrações de Ano Novo ao ar livre foram canceladas em Shanghai (e talvez em toda a China).  Imagina isso! O Ano Novo, o maior evento do calendário do País.  Tudo suspenso.
 
E, em Wuhan, começaram a racionar a comida — mesmo a dos médicos nos hospitais.  
 
Por fim, o que acontecerá com os mercados globais, devem comprar ou vender?  Certamente algo já está precificado, mas se é tarde para mudar de posição ou se o mercado ainda vai se mover muito depende dos trabalhos de contenção e cura do vírus. 
 
Somente saberemos no futuro, olhando para trás, mas o potencial é arrassador. Realmente espero que não passe de uma marola.
 
 
Charles Putz é sócio fundador da Verena Ventures, uma empresa de consultoria, e conselheiro da BR Properties, Sterlite Power e da Santos Port Authority.