BRASÍLIA — Talvez ainda esteja cedo, na perspectiva histórica, para se julgar, ponderar e contextualizar o papel e a contribuição de Roberto Marinho à vida nacional.

Afinal, faz apenas 16 anos que o todo-poderoso dono das Organizações Globo morreu, aos 98, deixando para trás um legado que hoje, como no início de sua vida empresarial, precisa se reinventar para enfrentar a era da Netflix e das redes sociais — o desafio da quarta geração da família.

Mas se a tinta da história ainda está fresca, um primeiro bom rascunho está no livro “Roberto Marinho: O Poder está no Ar”, do jornalista Leonencio Nossa, que conta a saga da família desde o percurso do pai, Irineu Marinho, até a criação do Jornal Nacional em 1969. O autor já trabalha no segundo volume, que deve ser lançado em 2020. 

Em alguma medida, o livro mostra como Roberto Marinho, seguindo o exemplo do pai, teve que inovar para sobreviver. Se Irineu já fora, no início do século 20, um empresário multimídia, aderindo ao modelo dos vespertinos e investindo em documentários e filmes, 

Roberto aprofundou a experiência. Percebeu cedo a necessidade da agilidade e da linguagem fácil no jornalismo. Mais ainda: enxergou a televisão, antes de muitos de seus pares na imprensa tradicional, o instrumento para a integração nacional. (Sua aposta naquele novo formato ainda deficitário quase o levou à bancarrota.)

Politicamente, o livro mostra como o ‘doutor Roberto’ (como era conhecido) conseguiu manter sua independência e ficar longe dos extremos:  o empresário tinha outros negócios para se financiar, como o ramo imobiliário e revistas em quadrinhos.  

O livro trata ainda das disputas com concorrentes e das relações pessoais delicadas. Marinho era muito próximo do banqueiro Walther Moreira Salles, mas a dificuldade de honrar dívidas resultantes do fim do acordo com a Time-Life causou uma fratura irrecuperável na amizade. (Magalhães Pinto, do Banco Nacional, salvou o empresário na última hora.)

Repórter veterano da sucursal do Estadão em Brasilia e ganhador de dois Prêmios Esso, Leonencio passou seis anos no projeto.  Procurou os Marinho e acumulou mais de 40 horas de conversas com os três filhos de Roberto. A família não pediu para ler a versão antecipadamente, o que faz desta a primeira biografia independente sobre o empresário. (Um outra foi escrita por Pedro Bial, funcionário da casa.)

Abaixo, trechos da conversa de Leonencio com o Brazil Journal

Seu livro mostra um Roberto Marinho visionário, inovador. Foi um traço herdado?

Irineu Marinho, o pai de Roberto, foi uma espécie de multimídia da sua época. Quando cria A Noite, um dos primeiros vespertinos do Rio, quem mandava no jogo da imprensa eram os matutinos. Irineu vê que é preciso atender uma demanda e passa a desbravar um novo mercado. Era um Brasil em transformação por causa do fim da escravidão e a chegada da República. Um período de muitas inovações tecnológicas, bem parecido com o mundo de hoje. 

Tem a criação e a chegada no Brasil dos cinematógrafos, as casas de exibição de imagens em movimento, a aviação e os aviadores europeus correndo o mundo para fazer apresentações, os próprios jornais ficando mais ágeis com os modelos vespertinos populares em Portugal. Irineu tenta absorver tudo isso, vai ser sócio dos cinematógrafos, cria uma empresa de documentários e até de filmes de ficção. 

O Roberto Marinho cresce nesta vibração, tanto que vira ator coadjuvante dos filmes quando criança. Roberto é criado neste ambiente de inovação tecnológica. Há um episódio em que ele, anos depois, ao comprar um gravador, manda um repórter fazer uma entrevista com um militar. O militar desmente a entrevista, mas o jornal tem a gravação e pode comprovar a veracidade. Os militares nem sabiam da novidade. Foi nos anos 1940. 

Que inovações específicas ele trouxe ao jornalismo?

Ao assumir a redação do vespertino O Globo, Roberto incorporou o espírito da velocidade que o pai já tinha. No vespertino, na visão dele, você precisava fazer manchetes simples e atraentes, porque quem vendia o jornal cantava as manchetes na rua. Na insurreição comunista de 35, Roberto rodou, num único dia, oito edições, quase uma a cada hora, em uma atualização comparável às coberturas de hoje em tempo real. Isso era muito agressivo para os concorrentes. Foi aí que ele conseguiu sobreviver. Foi mais ágil e apostou nas coisas mais simples, com manchetes mais pitorescas. O pai dele cria, mas cabe a Roberto aprimorar o modelo, fazendo um jornal para a cidade, para a comunidade do Rio de Janeiro. Não é um jornal sensacionalista, mas um jornal que atende um público novo, emergente, do subúrbio e zona norte. Vai além da grã-finagem da zona sul. 

Você descreve um Roberto Marinho que ora pendeu para um lado, ora para outro, mas que apostou no caminho do meio, longe das polarizações. 

Roberto vai se opor de um lado ao extremismo da esquerda, inclusive rompendo com velhos amigos do pai, mas também não segue o caminho da extrema direita. Ele vê que aquele caminho também não é bom para o negócio dele, ele vê que o caminho da empresa é o caminho do meio. Viu que era preciso fugir dos extremos, percebeu que não tinha como sobreviver aderindo a um ou outro porque o país era muito instável. Um grupo hoje estava no poder, amanhã poderia ser outro. Ele vai construir os alicerces do seu império entre os dois extremos.

Por que ele decide explorar outros meios de comunicação além do jornal?

Desde Irineu, a família já investia na ideia de uma rede. Ele tem o jornal, os documentários e filmes de ficção. Depois, com a chegada do rádio nos anos 20, e mesmo sem conseguir comprar uma, eles buscam parcerias para apresentações em rádios. Eles não tinham dinheiro para investir como outros grupos tinham. Roberto só consegue ter a Rádio Globo em 1944.

Já a TV é fruto de um processo muito antigo, que vem do cinematógrafo. Quando a TV surge com Getúlio Vargas, Chatô sai na frente com a TV Tupi, em 1950. Em 1951, Roberto já havia pedido uma concessão, que ele recebe mas vê ser cassada em seguida. Ele segue tentando entrar neste mundo da TV. O interesse dele é anterior ao de outros veículos de imprensa muito mais consolidados na época, como Jornal do Brasil e Estadão, que num primeiro momento não mostraram interesse. Isso demonstra que os Marinho tinham visão.

A implantação da Rádio Globo em 1944 começou como uma rádio que tocava música clássica, o que podia parecer de pouco interesse. Mas ele avaliava que existia o público. O pioneiro muitas vezes não tem a visão do administrador, do gestor. Ele está vislumbrando um novo mercado. Assim como ele avaliou que uma TV nacional era um bom negócio, mesmo quando você ainda tinha as capitais ligadas por telégrafo. 

Para viabilizar a TV, ele quase quebrou, além de enfrentar uma briga em família.  Como foram as dificuldades financeiras?

Roberto sofreu para financiar seus projetos e quase perdeu tudo. Ele sempre viveu muito em apuros. Quando ele vivia só do jornal, era uma situação complicada. Então ele viu que precisava buscar novas fontes de recursos. Entre elas estava investir no mercado imobiliário do Rio, aproveitando mudanças nas leis de inquilinato que permitiam venda de imóveis menores, mais populares. Nos anos 30, ele vai apostar também em revistas de quadrinhos, o que foi classificado como uma loucura até pela família. Já nos anos 40, ele constrói sua casa com dinheiro dos quadrinhos. Ele aposta em várias frentes. Quando ele cria a TV, há uma crise familiar. Faço um capítulo sobre isso chamado “Traição em família”. Os irmãos se opõem porque acham que ele vai quebrar o jornal com a loucura (da TV). Ele hipoteca as casas dele e cria a TV sozinho, a sociedade com os irmãos vai se limitar ao jornal.

O livro conta que os adversários de Marinho fizeram uma CPI para ferrar com ele no Congresso, mas o tiro saiu pela culatra. Como foi?

Sim. O acordo que ele faz com a Time Life é contestado e dá origem a uma CPI no Congresso, incentivada por políticos e grupos de imprensa concorrentes. Graças à CPI, que decide que o acordo era ilegal, Marinho transforma a participação societária em dívida. Eles (Time Life) viram credores, e Marinho fica como único dono. Ele terá que se virar para pagar, e será a parte financeira mais difícil, mas ele consegue. Os apuros financeiros se estendem até os anos 1970. Nesta etapa, ele tem grandes decepções, porque amigos que ele procura para ajudar com empréstimos não comparecem.

Há personagens pouco conhecidos nos livros de história que transitam pelo livro.  Quem foi o Lulu Aranha, por exemplo?

As pessoas são a época em que vivem. O Estado Novo é uma parte muito forte do livro. E ali você tem uma atuação de lobistas muito fortes, que não vem à tona em livros de história. Marinho se apoia, por exemplo, em Lulu Aranha, um gaúcho e irmão de Oswaldo Aranha, que foi o maior operador do período Vargas e que tinha conexões com os judeus de Nova York e a colônia judaica no Brasil. Roberto Marinho nunca se opôs ao ministro Oswaldo Aranha. Ele não dependia do dinheiro deste grupo porque ele tinha outras formas de se financiar, mas estava alinhado ao Oswaldo.

Os bancos vão ter muita força em momentos decisivos da história brasileira, com Vargas, com a discussão do presidencialismo do governo Jango, na questão do golpe de 64, seja na consolidação da ditadura, seja na redemocratização. A história do Roberto Marinho passa por estas relações. Assim como outras grandes empresas de comunicação, ele nem sempre estará em sintonia com estas instituições. Ele teve dificuldade para receber empréstimos, foi sofrido, ele se desentendeu com banqueiros.