Em “A regra é não ter regras”, seu livro lançado esta semana, o CEO e fundador da Netflix, Reed Hastings, conta como uma cultura de “liberdade e responsabilidade” ajudou a transformar uma pequena startup de aluguel de DVDs num colosso do streaming, como contamos nesta resenha.

11141 3afb9b3b 6861 c47b c8ab 8baa5a1df421Ontem à tarde, Hastings conversou com o Brazil Journal, Clarín (da Argentina), Gestión (do Peru) e Entrepreneur (do México). O fundador falou sobre o livro, sua forma incomum de gerir os negócios e como aplicar na prática os princípios da Netflix.

Por que você decidiu escrever esse livro? O que te motivou a transformar os princípios e a cultura da Netflix num livro?

Eu me pergunto exatamente isso… no que eu estava pensando? Foram três anos de trabalho, foi muito difícil (risos). 

Eu fui muito influenciado na minha vida por outros livros que li, e eu queria devolver isso de alguma forma e realmente compartilhar mais detalhes da história da Netflix. Além disso, acho que pequenas empresas vão ser capazes de fazer muitas coisas com as lições do livro. E os líderes de grandes companhias podem ler o livro e discutir sobre ele, pensar a respeito, mesmo que eles não copiem o que estamos fazendo. 

A ‘big picture’ aqui é que a maioria das companhias estão organizadas em torno do paradigma industrial, que herdamos das fábricas, onde as decisões são extremamente ‘top down’ e onde os funcionários têm que seguir regras. É assim que uma fábrica é organizada. 

Mas no trabalho criativo existem formas melhores de ter bons resultados e estimular a criatividade dos funcionários. Para fazer isso, você tem que dar a eles muita liberdade, muito suporte, trabalhar bem em equipe… esses são os princípios que estamos tentando evidenciar. Inevitavelmente, algumas companhias vão ler o livro e pensar, ‘isso é bom’, mas vão fazer um trabalho ainda melhor que o nosso em gerir, liderar e inspirar funcionários criativos. 

No livro, você diz que o aspecto mais crítico para o sucesso da Netflix foi ter uma alta ‘densidade de talentos’, uma proporção grande de profissionais muito talentosos. Mas qual é a sua definição de talento? Como você descreveria uma pessoa talentoso? 

Nossa visão é que preferimos ter 10 pessoas extraordinárias que tenham grandes talentos e boas habilidades para trabalhar em equipe, porque com essas 10 pessoas vamos conseguir ter resultados melhores do que se tivéssemos 20 pessoas medíocres e que não fossem boas em trabalhar em equipe. 

Densidade de talentos é ter menos pessoas, mas fazer com que elas sejam mais produtivas juntas. A gente se inspira muito nos esportes profissionais: se você pensar num time que quer ganhar a Copa do Mundo, por exemplo, ele tem que ter jogadores extraordinários em todas as posições para ter alguma chance.

A gente não tem um tamanho fixo — tipo, 11 jogadores — mas seguimos a mesma ideia básica: se você tem talentos incríveis em todas as posições da empresa isso vai gerar resultados melhores para os nossos clientes, melhores conteúdos, melhores serviços… e vai nos ajudar a crescer e a ganhar o campeonato no nosso setor.

Você também fala no livro sobre como dar e receber feedbacks frequentes ajuda a gerar resultados melhores. Como CEO, você já mudou algum aspecto da sua gestão por conta do feedback de algum funcionário?

Um bom exemplo é que começamos como uma empresa muito americana, crescendo na Califórnia. E a forma como os americanos desenvolvem confiança no trabalho é fazendo coisas juntos… como americanos não tendemos a jogar conversa fora sobre nossas famílias, esporte e outras amenidades nas reuniões. Somos muito focados no business e em fazer as coisas.

Isso é uma cultura e parece funcionar ok. Mas descobrimos que nossos colegas do Brasil, México e América Latina em geral trabalham formando relações. Eles almoçam juntos e realmente se dedicam a conhecer uns aos outros. É assim que eles criam confiança no trabalho. 

Nos últimos anos, percebemos que esse modelo realmente funciona melhor do que o estilo americano. E agora na companhia todas as pessoas começam as reuniões falando sobre suas famílias, suas viagens… sobre a humanidade por trás das pessoas. E então esperamos um pouco antes de entrar no business. Isso foi uma melhoria na nossa cultura e é um bom exemplo disso.

Você diz no livro que treinou seu management para ter a coragem e a disciplina para demitir os funcionários que não performam em níveis exemplares. Eu fiquei me perguntando: é possível performar em níveis tão altos 100% do tempo? Ser em todos os momentos criativo, otimista e colaborativo? E os altos e baixos dos seres humanos…?

Você está absolutamente certo. Eu uso bastante as analogias de esporte: se alguém errar um pênalti, isso é algo ruim. Mas se essa foi a única coisa errada que ele fez, você não vai julgar ele com base nisso… em um jogo ruim. Todo mundo reconhece isso e tentamos avaliar as pessoas com relação ao futuro, a sua contribuição potencial para a empresa. E isso com base num track record cumulativo. Ninguém é perfeito em todos os momentos, eu me incluo nisso… no livro, falamos de uma decisão horrível que eu tomei 10 anos atrás em relação a Qwikster. Se eu tivesse tomado três decisões erradas como aquela, seria minha hora de ir embora. Mas uma decisão errada acontece. 

E claro, se alguém está doente, ou acaba de ter um filho, essas circunstâncias que sabemos que fogem ao controle e são temporárias… nós acomodamos eles e não julgamos com base nesse momento. O que fazemos é um julgamento de longo prazo.

Você acha que a cultura da Netflix poderia ser aplicada em qualquer companhia, independente do tamanho ou perfil da empresa? Ou ela é mais adequada para um tipo específico de empresa?

Eu não acho que a cultura da Netflix deveria ser aplicada em companhias em que a segurança é um fator crítico, por exemplo. Não quero que as companhias aéreas sejam geridas pela filosofia de “liberdade e responsabilidade”, de não ter regras… 

Companhias aéreas, hospitais, e até indústrias que estão produzindo milhões de carros ou de remédios eu não acho que deveriam ser geridas com a cultura Netflix.

Mas se você pensar nas companhias criativas, que têm seu ganha-pão na inovação e em novas ideias, e basicamente vencem pensando, eu acho que todas essas companhias poderiam ser influenciadas por essas ideias. Vamos ver nos próximos anos se algumas grandes empresas também são capazes de se mover nessa direção.

Certamente, para empresas menores é mais fácil [aplicar nossa cultura], mas eu acho que mesmo lideranças de grandes empresas que lerem o livro podem ser influenciadas na forma como elas fazem as coisas e tomam decisões no dia a dia. 

Tem muitos empreendedores que defendem essa cultura de ‘se sentir bem’. A cultura de vocês é bem diferente. Você mesmo diz que vê seus funcionários como um time, e não uma família. O que você pode nos dizer sobre ser um líder hoje em dia, e nesse momento de pandemia?

Muitas empresas fingem que são como famílias, e depois elas tem uma demissão em massa, ou algo desse tipo. Uma família realmente boa continua junto não importa o que aconteça, mesmo se seu irmão for meio maluco, ou disfuncional… é isso que admiramos numa família. 

Um time também é muito bom, mas de uma forma diferente, que tem mais a ver com performance e com reunir um conjunto de pessoas vencedoras que vão trabalhar muito bem juntas. Tentamos ser bem honestos e diretos em relação a isso. 

Você perguntou sobre a pandemia… quando a pandemia começou, dissemos para nossos funcionários: “podemos ficar fora do escritório  por 12 meses” e teve muito negativismo sobre ter que fechar o escritório por tanto tempo. Mas eu acho que ao falar a verdade para as pessoas, criamos um senso de confiança, mesmo durante uma situação difícil. 

Nós não estamos tentando fazer as pessoas felizes. Estamos tentando tornar as pessoas produtivas e entender a realidade dos nossos competidores e consumidores. 

Na prática, como você encoraja pensamentos e ideias originais na empresa?

Definitivamente é desafiador se você senta e coloca na sua agenda: ‘tenha pensamentos originais agora’. Mas pense o seguinte: a maioria das empresas tenta ser muito limpa e organizada e eficiente e estéril. A gente tenta ser fértil e no limite do caos. Algumas vezes isso leva a novas ideias muito boas. Nem sempre. 

Mas o melhor que você pode fazer é criar outras condições para novas ideias. Você não vai ser realmente capaz de ‘fabricar’ essas ideias, mas ao menos você terá uma cultura que dá suporte e onde as pessoas estão questionando e pensando. Dessa forma, você aumenta sua probabilidade de ter grandes ideias novas.

O que você pensa sobre transparência nos salários?

Essa é uma ótima pergunta. Eu sou um grande fã de se dar transparência sobre os salários. E na Netflix, as mil pessoas mais importantes têm acesso aos dados de todos os salários da empresa. Isso cria alguma fricção, porque as pessoas às vezes se perguntam: ‘porque essa pessoa está ganhando US$ 5 mil a mais do que eu?’. 

Mas o balanço geral é que isso é saudável porque constrói confiança de que os salários são justos. Não há nenhum segredo, onde a diretoria poderia ter feito algo e todo mundo ficar se perguntando o que é. 

Essa política também significa que mais pessoas podem olhar os dados e detectar um viés, como por exemplo os homens estarem recebendo mais que as mulheres. 

Mas quando perguntamos para as mil pessoas mais importantes da Netflix se deveríamos expandir o acesso para as 8 mil pessoas mais importantes, eles falaram para não fazer isso, porque isso seria demais. Então, estamos num estágio intermediário em que os top mil funcionários têm acesso, mas o restante ainda não. 

Tem alguma decisão que você tomou no processo de construir a cultura da Netflix da qual você se arrepende?

Eu acho que não, porque, se eu me arrependesse de verdade, eu já teria consertado. Tem alguns aspectos que ainda estamos aprendendo. Como ser menos americanos, e mais globais. Como fazer com que nossos funcionários em Mumbai, Paris, Brasil sintam que podem se sair bem e que têm as mesmas chances de ter sucesso na empresa mesmo não sendo americanos. Isso é algo que ainda estamos trabalhando. Também estamos trabalhando em como ser cada vez melhores em dar feedbacks. Como suportar isso… tem várias coisas que ainda estão evoluindo, mas não consigo pensar em nenhum grande erro que a gente tenha cometido nesse aspecto e que eu gostaria de não ter feito.

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