O Sírio-Libanês sempre foi um misto de pronto socorro e porto seguro para a elite econômica do País.  Agora, uma nova tecnologia adotada pelo hospital vai aumentar a segurança nas transfusões de sangue, eliminando o risco de contaminação.

O hospital é o primeiro no Brasil a adotar o Intercept, uma tecnologia pioneira que permite a inativação de qualquer agente infeccioso — vírus, bactéria ou parasita — presente no sangue sendo doado.

Dr. Silvano WendelParece simples, mas é revolucionário.
 
Nas últimas décadas, uma seleção cuidadosa dos doadores bem como testes para doenças comumente transmitidas pelo sangue tornaram mais remota a chance de contaminação por vírus como o HIV, hepatite, doença de Chagas e sífilis. 

Um risco residual, no entanto, impedia a segurança completa: no período conhecido como ‘janela imunológica’, o doador já está infectado e pode contaminar o receptor, mas a doença não é identificada por testes.

Além disso, há sempre patologias novas, que não são cobertas pelas triagens. Pesquisas recentes indicam, por exemplo, que há riscos, ainda que baixos, de transmissão de doenças como dengue, zika e chikungunya por transfusão sanguínea.

“A grande beleza dessa nova tecnologia é exatamente essa: daqui para a frente não preciso ficar desenvolvendo e aplicando testes para todas as doenças que aparecem,” diz Silvano Wendel, diretor médico do banco de sangue do Sírio Libanês e ex-presidente da Sociedade Internacional de Transfusão de Sangue (ISBT, na sigla em inglês). “Não podemos e nem existem ferramentas para testar qualquer agente infeccioso.”
 
O Intercept foi desenvolvido pela Cerus Corporation, uma empresa de biomedicina da Califórnia que vale US$ 260 milhões na Nasdaq. Foi aprovado na Europa em 2002 e, nos Estados Unidos (onde as regras são mais rígidas) no fim de 2014.

No Brasil, a aprovação pela Anvisa veio um ano depois. Na Olimpíada do Rio de Janeiro, realizada no auge do surto de zika no País, o Comitê Olímpico Internacional (COI) exigiu que os atletas eventualmente submetidos a transfusão recebessem sangue tratado pelo Intercept.

A tecnologia funciona assim: as bolsas recebem um reagente que se liga ao DNA ou a RNA presente no sangue.  Em seguida vão para um aparelho, onde são submetidas a uma luz ultravioleta que consolida essa ligação. Com o material genético cooptado, os agentes infecciosos não conseguem se reproduzir e são inativados.

Por enquanto, o Intercept está disponível apenas para os concentrados de plaquetas e plasma, utilizados principalmente em pacientes que têm alterações em processos de coagulação ou quadros hemorrágicos —  comuns em quem é submetido à quimioterapia ou transplantes de medula óssea.

Como o Sírio é referência em oncologia, cerca de 50% das bolsas transfundidas referem-se a esses componentes. (Só de concentrados de plaquetas e plasma, são 2.100 bolsas por ano, em média.)

As bolsas de hemácias, que contêm a hemoglobina, e são utilizadas em casos de anemia ou grande perda de sangue, ainda não reagem à tecnologia: por conta da coloração vermelha, elas têm menor sensibilidade à luz ultravioleta. Um novo reagente que desativa o DNA também deste componente está em fase de aprovação nos Estados Unidos e deve chegar ao mercado num prazo de seis meses a um ano.

Mais do que simplesmente comprar a tecnologia e os reagentes, o Sírio teve que mudar toda a forma como seu banco de sangue opera. 
 
Para ser submetido ao Intercept, o sangue não pode ter sido colhido há mais de 24 horas. “Antes não podíamos ter falta, mas hoje também não podemos ter excesso e precisamos ser muito assertivos no controle do estoque”, explica o Dr. Wendel. “No começo, gerou um desconforto porque tivemos que mandar doadores para casa e pedir para voltarem em outro dia. Agora, já está organizado”. O hospital também deixou de aceitar troca de bolsas de sangue de outras instituições, o que acontecia de 2% a 5% dos casos.

Mas o progresso da ciência ainda é um privilégio da elite.

Como a tecnologia ainda é incipiente e cara, ela só foi adotada de forma mais ampla por países ricos e com população pouco numerosa, como Holanda, Suécia e Eslovênia. De acordo com o Dr. Wendel, apenas 500 mil bolsas de sangue foram submetidas à tecnologia no mundo, frente às 90 milhões de transfusões feitas anualmente.

“Esse é um paradoxo que a gente vive hoje: os países que vivem surtos de doenças contagiosas, como os africanos e até em menor grau o Brasil, não têm recursos financeiros para viabilizar o uso massivo. É uma questão de começar. Quanto mais volume a gente tiver, mais barata a tecnologia vai ficar.”