AMÃ, Jordânia – Num prédio de oito andares nos arredores desta capital, médicos e enfermeiras estão trazendo alívio a vítimas das guerras no Oriente Médio, um trabalho com uma demanda tragicamente infinita. 

Poucos minutos no hall do hospital servem uma amostra da herança maldita deixada pelos conflitos. Por aqui circula uma permutação de tragédias pessoais: pessoas deformadas, queimadas, em cadeiras de rodas, com braços e/ou pernas amputados.

País mais estável da região, a Jordânia foi escolhida pela Médicos Sem Fronteiras (MSF) para instalar seu Programa de Cirurgia Reconstrutiva, um projeto destinado a restaurar os corpos dilacerados nos confrontos armados da última década.  

No Hospital Al-Mowasah, uma equipe de 120 pessoas – seis das quais cirurgiões – realiza operações de alta complexidade e usa tecnologia de ponta (como próteses impressas em 3D) para reconstruir membros mutilados e combater infecções. O trabalho é dificultado pelo alto índice de resistência das bactérias, resultante do uso indiscriminado de antibióticos na região.  

Aos 20 anos, Salwa (nome fictício) é uma das pacientes. Ela entrou para as estatísticas da guerra civil na Síria em novembro de 2014, quando foi atingida por uma explosão de gás: teve queimaduras tão severas nas mãos e no pescoço que afetaram seus movimentos. “Meu pescoço me fazia olhar para baixo, tamanha a contração”, me disse numa tarde de fevereiro.

Exilada há dois anos com a família em Azrak, o maior campo de refugiados da Jordânia, Salwa adiou o sonho de se tornar uma estudante universitária de literatura inglesa ou administração quando foi selecionada para se tratar no hospital no início do ano. As vagas são tão escassas (vis-à-vis a demanda) que Salwa pode se considerar uma privilegiada entre os milhões de feridos da última década. 

Além de vidas, as guerras no Oriente Médio destruíram muitos hospitais e restam poucas opções de tratamento – muito menos locais especializados – para os sobreviventes atingidos por balas, bombardeios, estilhaços e explosões. Sem atendimento adequado, grande parte deles é condenada a viver em condição de dependência extrema: ficam presos a uma cama, sem conseguir comer ou mesmo falar.

Para tentar preencher esse vácuo na saúde da região, a Médicos Sem Fronteiras inaugurou o projeto aqui em Amã em 2006, inicialmente para atender as vítimas da guerra do Iraque. Mas a explosão da violência em Gaza, a Primavera Árabe e as guerras na Síria e no Iêmen levaram à expansão do programa de cirurgia reconstrutiva.

Onze anos após sua criação, o hospital tem um orçamento anual de quase €12 milhões, um dos maiores da MSF, e é referência internacional pela expertise desenvolvida no tratamento de feridos de guerra. O modelo é caro porque envolve transportar pacientes – e, no caso de mulheres e crianças, um acompanhante – de seus países até a Jordânia, além de mantê-los durante o período de tratamento.

“Desenvolvemos um alto nível de especialização,” me disse o chefe de missão do Hospital de Cirurgia Reconstrutiva, Marc Schakal. “Esse tipo de cirurgia em países ocidentais é voltado a acidentes de carro, domésticos ou anomalias congênitas. A complexidade de ferimentos de guerra é muito diferente. Não há muita gente fazendo o que fazemos aqui.” 

De 2006 a 2017 o hospital realizou 11.100 cirurgias e admitiu 4.745 pacientes, entre iraquianos (56% do total), sírios (27%), iemenitas (15%), palestinos (1%) e outras nacionalidades. No ano passado, recebeu 580 pacientes, um número recorde, chegando próximo de sua capacidade máxima. 

Cerca de 20% do público são crianças.

Durante minha visita ao hospital, 12 meninos e meninas participavam de uma atividade liderada por uma enfermeira. Em uma sala decorada com desenhos infantis, ela tem o desafio de conciliar as necessidades de crianças com idades de 5 a 14 anos, muitas vezes afastadas da escola há longo tempo em decorrência dos conflitos. Mesmo com o rosto marcado por queimaduras que doem a quem os olha, durante o teste de matemática conduzido com leveza pela orientadora eles conseguiram ser, por alguns instantes, apenas crianças.

O iemenita Emad, 30 anos, trabalhava como funcionário público quando o tiro de um sniper entrou pelo seu pescoço e atravessou sua boca. No fim do ano passado ele foi levado por médicos da MSF para se tratar em Amã, deixando os pais e irmãos no Iêmen, país que enfrenta uma guerra civil há três anos.

Emad já fez uma cirurgia — recebeu placas de aço e teve nervos restaurados — mas ainda precisará de um transplante de osso para recuperar a mandíbula. “Vim pra cá porque não tinha condições de tratamento no Iêmen, por causa da guerra. Só desejo que os conflitos acabem e que possa voltar para o trabalho e meus familiares”, conta o paciente num dos 148 leitos do hospital.

Aqui, as cirurgias se dividem em ortopédicas, maxilofaciais e plásticas. O principal critério para se admitir um caso não é estético, mas sim as chances de recuperação de funções e movimentos. Além da intervenção cirúrgica, o trabalho também envolve reabilitação com fisioterapia e apoio psicológico, uma vez que a maioria dos pacientes tem traumas de guerra. 

O atual contexto da região sugere que o hospital terá vida longa. Pelos cálculos da Unicef, só na Síria mais de mil crianças morreram ou ficaram gravemente feridas desde o início de 2018.

“Está piorando. E mesmo que (os conflitos) terminem amanhã haverá milhões de pessoas feridas precisando de cirurgia reconstrutiva”, afirma Schakal. “Definitivamente esse hospital não é suficiente para cobrir as necessidades de toda a região porque há violência em toda a parte. E sequer sabemos exatamente o que está acontecendo dentro da Síria, porque a fronteira está fechada. Acho que vamos encontrar uma situação muito ruim lá”.

 

Na foto acima, uma paciente que sofreu queimaduras na explosão de um míssil no Iraque faz aula de música no hospital da Médicos Sem Fronteiras em Amã.  Foto de Alessio Mamo.

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